Zero: enterramento de animais mortos em áreas remotas pode não ajudar aves necrófagas

Face ao acumular de dívidas na ordem dos 10 milhões de euros e ao registo de muitos meses de atraso nos pagamentos por parte do Estado ao consórcio responsável pela operacionalização do SIRCA – Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais mortos nas explorações, a Zero foi analisar se a recente medida adotada pela Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) que visa facilitar a eliminação com recurso ao enterramento dos animais em áreas remotas é económica e ambientalmente adequada. E as conclusões são claras: facilitar o enterramento de animais poupa pouco dinheiro ao Estado, impede a reciclagem natural e industrial dos subprodutos animais e cria condições para que continue a faltar alimento às populações de aves necrófagas ameaçadas.

Aves necrófagas sem comida
Há algumas décadas quando morria uma cabra, uma ovelha, uma vaca ou até um porco, o cadáver era abandonado nos campos e essa situação favorecia as aves com hábitos necrófagos – Grifo (Gyps fulvus), Abutres-pretos (Aegypius monachus), Britango (Neophron percnopterus), Águia-real (Aquila chrysaetos), Milhafre-real (Milvus milvus), etc. – as quais prestam um serviço de reciclagem gratuito ao alimentarem-se dos animais mortos. Toda esta situação viria a alterar-se com o surgimento de doenças infeto-contagiosas, já que regras sanitárias mais exigentes obrigaram a recolher os cadáveres dos campos ou enterrá-los, fazendo desaparecer estas aves do ecossistema e aumentando ainda mais a sua dependência de atividades humanas. Numa altura em que se regista um consenso com vista à criação de regras sanitárias menos apertadas em algumas zonas do país, para fazer chegar comida com alguma previsibilidade no tempo e no espaço às aves necrófagas, criando inclusive condições para aumentar as populações de espécies mais ameaçadas, como o Abutre-preto ou o Britango, a recente medida aprovada, que facilita o enterramento de animais, vai, na prática, retirar a possibilidade de viabilizar a existência de zonas de proteção para alimentação de aves necrófagas e de manter os atuais 24 campos de alimentação a funcionar com regularidade.

Assim, face a um valor estimado de 1.220 toneladas de animais mortos que anualmente são recolhidas nas explorações extensivas situadas em áreas remotas – abrangendo, parcial ou totalmente, 134 municípios – e tendo em conta as necessidades atuais de alimento das aves necrófagas, que rondam as 900 toneladas/ ano, bem como o facto de muitas das áreas remotas não coincidirem com as áreas de ocorrência de populações destas aves, constata-se que a facilitação do enterramento de cadáveres impedirá fortemente a disponibilização de alimento.

Acresce ainda que é inconcebível que a Estratégia para Conservação das Aves Necrófagas em Portugal (ECANP), elaborada pelo ICNF – Instituto da Conservação da Natureza e Florestas – continue esquecida, sendo a publicação de medidas avulsas por parte da DGAV uma demonstração inequívoca de que existe uma profunda desarticulação entre estas duas entidades.

Fracas poupanças, ausência de reciclagem e saúde pública em risco
Por outro lado, seria suposto que o enterramento de cadáveres em áreas remotas pudesse gerar poupanças significativas ao erário público, mas não é isso que se verifica. Se os animais mortos nas explorações destas áreas fossem enterrados no local, poupar-se-ia apenas, e no máximo, 900 mil euros, num sistema que custa 11 milhões de euros para todo território nacional, cabendo aos consumidores portugueses um apoio de 8 milhões de euros. Mais, o enterramento de animais é uma solução que não promove a reciclagem natural, através do relevante contributo que podem ter os animais de hábitos necrófagos, que impede a reciclagem industrial, já que os subprodutos animais dão origem a gorduras, farinhas e o que não pode ser reciclado é utilizado na produção de energia. Esta situação pode mesmo levar a más práticas por parte dos produtores, o que aumenta os riscos de disseminação de doenças infeto-contagiosas e de contaminação dos solos e dos aquíferos.

SIRCA tem que ser repensado para que a reciclagem natural faça parte do sistema
Tendo em conta o atrás exposto, a Zero advoga que o papel do SIRCA seja repensado de molde a que as aves necrófagas façam parte da equação. Um novo modelo de gestão deve ter uma gestão profissional envolvendo o consórcio responsável pela recolha no apoio à reciclagem natural, responsabilizando-se o mesmo pelo encaminhando dos animais mortos, ao mesmo tempo que se assegura a qualidade da alimentação fornecida e se previne a disseminação de doenças. Esta gestão deverá ser efetuada em conjunto com as entidades gestoras dos campos de alimentação licenciados e também com os agricultores que venham a disponibilizar a utilização dos seus terrenos como zonas de proteção. Neste contexto, recorrendo a fundos comunitários para financiar os investimentos iniciais de criação de infraestruturas e da logística necessárias, é admissível que o SIRCA reformulado possa poupar muito dinheiro e evitar um grande volume de emissões de CO2 em deslocações, já que as duas unidades licenciadas para o tratamento de subprodutos animais localizam-se em S. João da Madeira e em Coruche, obrigando este facto a grandes distâncias no encaminhamento dos cadáveres.

Na opinião da Zero seria também um imperativo que o SIRCA estivesse completamente conciliado com a ECANP e, dessa forma, não só fossem criadas as condições para incrementar as populações de espécies ameaçadas, mas também se pudesse registar o alargamento das áreas de nidificação a territórios onde outrora foram abundantes (por exemplo, Serra de Monfurado, Cabrela, Serra da Estrela, Serras da Freita e Arada ou Serra de Montemuro).

Considerando a argumentação anterior, a Zero gostaria de reforçar o seguinte:
– Reformulação da proposta ECANP para se estabelecer uma total conciliação da mesma com a gestão do SIRCA e sujeição deste documento a consulta pública no curto prazo;
– Reformulação imediata do despacho n.º 3844, de 8 de maio, não só dando caráter excecional à eliminação com recurso ao enterramento e obrigando os produtores que o queiram fazer a um processo de comunicação prévia, mas também reformulando as áreas classificadas como remotas;
– Regulamentar de imediato as novas regras e procedimentos relativos à utilização de subprodutos animais na alimentação de aves necrófagas e de outras espécies que vivam no seu habitat natural;
– Regularizar totalmente as dívidas do SIRCA já no Orçamento do Estado de 2018, por forma a que se inicie uma negociação séria com o consórcio que operacionaliza o SIRCA, para que passe a figurar no contrato existente a reciclagem natural e a conservação das aves necrófagas.