#Ambiguia: A falta de água será a próxima crise europeia?

Depois de um mês de abril com recordes de temperatura máxima, o Governo já declarou situação de seca em 40% do território nacional. A esta situação acresce que Portugal está entre os países que mais vai sofrer com a falta de água. Já são muitos os investigadores a alertar para a necessidade e urgência de um consumo mais sustentável.

No meio de tantos alertas, será que a falta de água pode vir a ser a próxima crise europeia? 

Por: Jorge Cardoso Gonçalves, Presidente da APRH – Associação Portuguesa dos Recursos Hídricos
  • O que é que significa estar 40% do território nacional em seca?

Este valor reflete, globalmente, a percentagem do território que se encontra em situação de seca severa e seca extrema, de acordo com o índice PDSI — Palmer Drought Severity Index. O Portal do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) refere, para o final de abril de 2023, índices de seca meteorológica para o território nacional variáveis.

 O IPMA destaca a região Nordeste na classe de seca moderada e, na região sul, os distritos de Setúbal, Évora, Beja e Faro nas classes de seca severa a extrema. A identificação mais detalhada das situações críticas permite mobilizar esforços para reforçar a resiliência das comunidades e utilizadores de água. 

  • Como é que se explica uma situação de seca em 40% do território nacional no mês de maio?

O índice utilizado para avaliar e monitorizar a situação de seca, PDSI — Palmer Drought Severity Index, baseia-se em dados de precipitação e de temperatura do ar. Este índice deverá ser avaliado em ponderação com o contexto das diferentes regiões do território, em termos de necessidades e disponibilidades, introduzindo-se o conceito de escassez de água.

A escassez de água é a carência de recursos hídricos disponíveis face ao que seriam os suficientes para atender às necessidades de uso da água numa dada região. A escassez poderá enquadrar-se como um fenómeno antropogénico, que resulta fundamentalmente de um desequilíbrio entre a oferta e procura do recurso água.

  • Como é que se prepara um país como Portugal para dar resposta a um desafio desta envergadura? 

O Plano Nacional de Uso Eficiente da Água inclui um conjunto de medidas estruturadas para diferentes cenários de escassez hídrica, que permitem preparar uma resposta em contexto de seca. Destacaria a necessidade de operacionalizar o plano, traduzindo-o em medidas práticas e de implementação eficaz na gestão da procura (redução dos consumos de água) e no combate às ineficiências (perdas de água).

 A gestão musculada dos serviços de águas, em particular do abastecimento público, deverá incorporar uma visão holística e integrada, que atenda aos desafios da redução de perdas de água, da utilização de tarifas adequadas, da gestão da procura de água potável, da utilização de águas residuais tratadas e aproveitamento de águas pluviais, da promoção de uma lógica circular e da gestão de ineficiências energéticas.

 As medidas a implementar necessitam de suporte técnico, de investimento na reabilitação e reforço infraestruturas, da aposta em inovação e tecnologia, e do envolvimento e compromisso de todos: instituições, entidades gestoras de serviços de águas e consumidores.

  • Quando é que o cidadão vai dar o devido valor à água? E até lá, o que pode fazer? 

Por vezes, apenas em cenários de escassez se reconhece o “valor da água”. Quantas vezes abrimos a torneira e não tivemos água? Quão distantes estão as mulheres e crianças que gastam horas do seu dia para ter acesso à água (muitas vezes sem qualidade)? Portugal está globalmente infraestruturado com redes de abastecimento de água e a percentagem de água segura em Portugal Continental é de cerca de 99%, considerado um valor de excelência: sabemos quanto vale esse acesso a água segura, em termos de saúde pública, de igualdade e de justiça? Existe a necessidade de repensar a forma como usamos a água e de promover a “educação para água”.

 A redução do consumo de água nas habitações tem uma componente comportamental e outra infraestrutural. Poderá passar pelas nossas escolhas (alimentares – p.ex. redução do consumo de carne, produtos sazonais; materiais – p.ex.: fast fashion) e pela adequação dos nossos hábitos, com pequenos cuidados no nosso quotidiano. Nos sistemas prediais de distribuição de água, deverá procurar-se combater as ineficiências (p.ex.: perdas de água e energia), adequar os sistemas construídos (p.ex.: instalação de redutores de caudal), reduzir o consumo de água potável (p.ex.: redes diferenciais – água potável e água não potável; reutilização de águas residuais cinzentas; aproveitamento de águas pluviais) e escolher equipamentos tendo em conta a sua eficiência hídrica.

  • Medidas como as que foram tomadas pela França podem e devem ser replicadas em Portugal? Porquê?

Em contexto de seca deverão ser adotadas medidas para evitar a escassez de água, que poderão ser mais musculadas e, em cenários de contingência, incluir a interdição para determinados usos (p.ex.: regas de jardins; lavagens), privilegiando o abastecimento para consumo humano.

 Em Portugal, à exceção de situações pontuais, o abastecimento urbano encontra-se estruturado e existem infraestruturas que, sendo geridas de forma robusta, asseguram que a seca não chega às nossas torneiras. No entanto, é necessária uma mudança de mentalidade em relação ao consumo e uso da água, que deverá ser uma prioridade e uma aposta assertiva dos diferentes decisores e intervenientes. Vamos continuar a utilizar água potável para fins não potáveis? A regar com a mesma água que bebemos? A ter autoclismos alimentados por água potável? A lavar as ruas com a mesma água que abastece as nossas casas?

Não existem respostas “fechadas” a estas questões, mas a estratégia poderá passar por repensar a forma como usamos a água (preservar o recurso a partir da nossa torneira), por reduzir as perdas de água nos sistemas urbanos, na indústria e na agricultura, por reutilizar as águas residuais para fins não potáveis, por aproveitar as águas pluviais e/ou promover a sua infiltração, por explorar e apostar (com viabilidade económica e ambiental) em novas origens (p.ex.: o mar), por encurtar as cadeias de abastecimento (produzir e consumir localmente), e por planear, colocando na equação a “bomba relógio” da não renovação de infraestruturas hidráulicas que começam a atingir o seu tempo de vida.

  •  A agricultura e o turismo são mesmo os setores que consomem mais água ou é trata-se de uma “acusação” sem fundamento?

O setor agrícola é o maior utilizador de água. Em Portugal, o turismo tem particular relevância, principalmente em zonas mais expostas à escassez de água (p.ex.: Algarve). Não nos esquecendo do papel crucial da agricultura na resposta ao desafio da segurança alimentar, e da importância turismo para a riqueza nacional, devemos transmitir as mensagens “viver com menos água” (eficiência hídrica dos sistemas e adequação de hábitos de consumo) e “viver com outra água” (procura de novas origens e utilização de água não potável para fins compatíveis).

Existem bons e maus exemplos nos diversos usos da água. Em Portugal, pode referir-se uma evolução positiva dos sistemas de regadio que são, atualmente, mais resilientes à escassez. No setor do turismo, existem operadores com sistemas cada vez mais eficientes e começa a ganhar espaço a utilização de água residual tratada. Os casos positivos devem ser divulgados e replicados, contribuindo para uma evolução global no sentido da proteção dos recursos hídricos.

  • Como tornar estes setores mais despertos para o problema? 

A água, essencial à vida e “o princípio de todas as coisas”, tem um valor económico – permitindo o desenvolvimento de diversas atividades económicas (p.ex.: agricultura, produção de energia, indústria e turismo), ambiental – assegurando a existência dos ecossistemas, e social – sendo fundamental para as pessoas, para a saúde pública e para a igualdade.

 Em cenários de escassez de água, em particular em períodos de contingência, o abastecimento para consumo humano será sempre prioritário, em detrimento dos restantes usos. A consciencialização para esta obrigatoriedade deverá fazer “despertar” os restantes utilizadores, para repensarem os seus sistemas, investirem na eficiência e procurarem origens alternativas.

O setor agrícola, não deixando de ser o maior utilizador de água, terá sempre margem para evoluir a partir do recurso a novas ferramentas de gestão, monitorização e controlo de perdas, bem como recorrendo a culturas hidricamente menos exigentes, mas com interesse económico e alimentar. O recurso a novos sistemas agrícolas (interior e vertical), a agricultura de precisão (regas mais eficientes), a tecnologias intermédias mais sofisticadas (na cadeia logística, transporte e transformação) e a tecnologias e produtos mais sustentáveis (proteínas, bioenergia e biomateriais) deverão ser igualmente uma aposta.

  • A água pode vir mesmo a ser a próxima crise europeia?

Globalmente, têm sido diversos os alertas sobre a “crise da água”. Uma evolução não planeada, uma gestão não adaptativa e um contexto desfavorável, poderão acentuar o desequilíbrio entre necessidades (procura) e disponibilidades (oferta), aumentando a pressão sobre os recursos e precipitando uma “crise da água” na Europa e no Mundo. A gestão dos recursos hídricos deverá assentar numa visão integrada, considerando desafios ambientais, demográficos, sociais, económicos, territoriais e climáticos.

Neste contexto, será necessário gerir as infraestruturas hidráulicas construídas (perdas de água; afluências indevidas; gestão patrimonial e gestão do risco; inovação e tecnologia; eficiência financeira, hídrica e energética), implementar uma lógica de economia circular (reutilização; aproveitamento de águas pluviais; valorização de nutrientes e matéria orgânica; produção de energia nos sistemas; soluções de controlo na origem) e atender aos desafios globais (poluentes emergentes; eventos extremos; gestão da procura; adaptação climática; evolução demográfica diferenciada; nexus água-energia; novas origens – o mar; digitalização).