#Ambiguia: A falta de água será a próxima crise europeia?

Depois de um mês de abril com recordes de temperatura máxima, o Governo já declarou situação de seca em 40% do território nacional. A esta situação acresce que Portugal está entre os países que mais vai sofrer com a falta de água. Já são muitos os investigadores a alertar para a necessidade e urgência de um consumo mais sustentável.

No meio de tantos alertas, será que a falta de água pode vir a ser a próxima crise europeia?

Por: Carlos Vieira, diretor delegado dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de Sintra
  • O que é que significa estar 40% do território nacional em seca?

Significa, antes de mais, uma situação muito preocupante e que exige medidas estruturais. No anterior ano hídrico, que arrancou em outubro de 2021, enfrentámos um dos piores de sempre, com o reconhecimento de estarmos perante um período de seca severa e extrema. Foram adotadas medidas, em primeira instância para assegurar que a água não faltasse para a necessidade básica de abastecimento às populações, mas, passado esse período mais preocupante, voltámos a encarar o problema como algo que estava ultrapassado.

Regressámos, agora, à dura realidade de que este é um problema estrutural e não circunstancial. Mas, infelizmente, as medidas estruturais continuam sem aplicação prática no terreno. Até uma das medidas há muito anunciadas, para dar resposta a uma das zonas do país com maiores problemas de escassez hídrica, o Algarve, continua perdido num emaranhado de teias que se prende com o facto de ninguém querer assumir a localização de uma central de dessalinização, num território onde o turismo é rei. Mas, precisamente, esse turismo será dos setores mais afetados se a água começar a faltar nas torneiras e a seca obrigar a um racionamento desse precioso bem.

  • Como é que se explica uma situação de seca em 40% do território nacional no mês de maio?

Esta situação provém de anos e anos de falta de medidas concretas no sentido da eficiência hídrica, mas, naturalmente, também advém das alterações climáticas e do aquecimento global do Planeta. Este é um problema que só com uma consciência universal, dos governos dos principais países industrializados, pode ser mitigado para que ainda seja possível transmitir um melhor planeta às futuras gerações.

Quando a medidas de eficiência hídrica, todas as entidades gestoras devem assumir esse objetivo, como uma prioridade e começar por reduzir as perdas de água nos respetivos concelhos. Em Sintra, desde 2014, os SMAS elegeram esse desafio, a redução das perdas, tanto físicas como comerciais, como um objetivo estratégico e, se então estávamos na ordem dos 30,9%, agora estamos em 17,7% e já definimos a meta ambiciosa de reduzir para 15% até ao final de 2025.

  • Como é que se prepara um país como Portugal para dar resposta a um desafio desta envergadura?

Exigem-se medidas, desde logo ao nível da redução das perdas de água, como já referi, mas também em relação ao incremento da reutilização da água residual tratada. Esta é outra das situações que continuamos à espera de medidas efetivas. Também aqui, os SMAS de Sintra vão aprofundar algo em que inovaram, já que, há cerca de quase duas décadas, criaram o projeto EcoÁgua, com o objetivo de reutilizar a água residual tratada para fins não potáveis, nomeadamente nas próprias estações de tratamento de águas residuais.

Já reutilizamos 6% da água tratada nas nossas unidades, quando a média nacional não ultrapassa os 2%, mas queremos dar um salto qualitativo a este nível e, no âmbito da requalificação da ETAR da Cavaleira, em Algueirão-Mem Martins, estamos apostados em aumentar esta reutilização em fins externos, como a rega dos espaços verdes do Parque Urbano da Cavaleira e do futuro Hospital de Proximidade de Sintra. Estes serão passos seguros para dar um novo destino a um recurso que, após o seu tratamento, tem todas as condições para voltar à natureza que não apenas o seu encaminhamento para uma qualquer linha de água.

  • Quando é que o cidadão vai dar o devido valor à água? E até lá, o que pode fazer?

Naturalmente, quando a água começar a faltar nas torneiras. Como responsável de uma entidade gestora, tudo farei para que esse seja um cenário que não ocorra. Mas, esta é uma realidade que não depende de nós; por exemplo nos SMAS de Sintra, dependemos, quase exclusivamente, da água fornecida pela EPAL e captada na albufeira de Castelo de Bode.

Até lá, podemos sempre apelar a um uso eficiente deste recurso essencial à vida, para que os cidadãos tenham consciência de que estamos perante um bem que, no futuro, será escasso e em que cada um de nós pode dar o seu contributo para que não se torne ainda mais escasso. É um contributo pessoal a favor da própria Humanidade, já que, em muitos países, este é um problema que já se coloca com muita acuidade.

  • Medidas como as que foram tomadas pela França podem e devem ser replicadas em Portugal? Porquê?

Medidas mais severas, como a proibição de lavar carros, regar os jardins e encher as piscinas, como foi determinado pelo Governo francês, para os Pirinéus orientais, na fronteira com a Catalunha, são sempre mais difíceis de implementar e de controlar, mas que estas imposições, em solo gaulês, sirvam de alerta para os cidadãos portugueses.

  • A agricultura e o turismo são mesmo os setores que consomem mais água ou trata-se de uma “acusação” sem fundamento?

Os indicadores são inequívocos: o setor agrícola representa, no nosso país, mais de 70% do total da água utilizada, quando a média da União Europeia não ultrapassa os 25%. Segundo dados avançados pela Agência Portuguesa do Ambiente, a agricultura portuguesa consome o equivalente a duas albufeiras do Alqueva. A percentagem de Portugal está, no entanto, em linha com o que acontece nos países mediterrâneos, como Espanha e Grécia. O turismo é, naturalmente, pelo aumento da população em território luso, também um sorvedouro de água.

  • Como tornar estes setores mais despertos para o problema?

Estes setores estão, creio, despertos para este problema. Mas, há ainda um caminho longo a percorrer para que a situação seja invertida e, tanto no setor agrícola como no turístico, o incremento da reutilização da água residual tratada pode constituir uma medida para mitigar a escassez de água potável, que não deve ser utilizada para regar campos de golfe, como, infelizmente, ainda acontece em diversos locais. O setor agrícola também deve ter especial atenção a plantações de espécies que exigem muita quantidade de água.

  • A água pode vir mesmo a ser a próxima crise europeia?

A escassez de água tem de ser encarada como um problema que, mais tarde ou mais cedo, poderá assumir contornos mais gravosos e que exige a atenção dos líderes mundiais, para que seja possível, como refere o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6, “até 2030, aumentar substancialmente a eficiência no uso da água em todos os setores e assegurar extrações sustentáveis e o abastecimento de água doce para enfrentar a escassez de água, e reduzir substancialmente o número de pessoas que sofrem com a escassez de água”.