Beta-i: “Portugal tem um potencial muito grande para liderar a transição para a economia circular”

A Ambiente Magazine entrevistou Ana Costa, Sustainability and Blue Economy Director na Beta-i, para perceber em que ponto estão os desafios ao nível da sustentabilidade e da transição energética.

 

Quais foram os principais desafios, ao nível da sustentabilidade, em 2023?

Em 2023, vários desafios importantes em termos de sustentabilidade continuaram a exigir atenção e ação por parte da comunidade global. Tendo estes sido regionais ou nacionais, a verdade é que o seu impacto não deixou nenhum setor indiferente.

As alterações climáticas deixaram de ser um modelo científico do futuro, sendo hoje um desafio diário implacável. O ano que passou foi marcado por impactos fortes ao nível das alterações climáticas, com eventos climáticos extremos a acontecer em diferentes partes do mundo, tornando-se inegável a contribuição humana para o que estamos a viver. Como consequência, milhares de vidas foram desafiadas seja por incêndios, inundações, escassez de água ou mesmo férias abandonadas devido ao extremo calor que tornava insuportável as estadias em determinadas cidades. Mas as consequências não ficaram apenas pelas pessoas. Os negócios também sofreram, tanto pela escassez de matérias primas, pela nova necessidade de substituir fornecedores impactados por estes eventos ou mesmo pelo aumento dos custos de produção associados.

E se no ano que passou as alterações climáticas se tornaram tangíveis para muitos, talvez tenha sido também o ano em que a sustentabilidade deixou de ser uma preocupação para alguns e passou a ser uma questão de todos. A sustentabilidade é hoje mainstream, transversal a países, empresas e faixas etárias. E, embora 2023 tenha sido um ano conturbado em termos geopolíticos e económicos, o tema da sustentabilidade não foi abandonado pelo poder público, nem pelas empresas, que continuaram a trabalhar estes temas e a torná-los centrais na gestão corrente, (mesmo com aumentos de custos de matérias primas e energia). Manter a sustentabilidade central num período de crise económica e de recursos humanos foi, sem dúvida, um dos grandes desafios para as empresas.

Em que pé está Portugal no combate às alterações climáticas?

Segundo o Índice de Desempenho das Alterações Climáticas (CCPI) que avalia o desempenho climático de 63 países e da União Europeia, Portugal é um país de alto desempenho, encontrando-se no 13º lugar do ranking (as três primeiras posições encontram-se vazias uma vez que nenhum país teve a performance necessária para atingir estas posições), tendo subido uma posição no ranking de 2022 para 2023.

Em junho, a lei do clima considerou um aumento da redução de emissões de gases de efeito estufa para 2030, estabelecendo o target em -55% (face ao anterior ange de -40% a -55%).

Estes dados são indicadores de que o país está a fazer o seu caminho e está comprometido com o combate às alterações climáticas, embora exista muito ainda por fazer, nomeadamente ao nível da subsidiação de combustíveis fósseis até 2030, da melhoria dos transportes públicos e da implementação de planos de mobilidade urbana sustentável nas cidades ou mesmo o apoio à reabilitação urbana para melhoria da eficiência energética.

O nosso país tem ainda mais potencial para promover a economia circular e a aposta nas energias renováveis?

Sem dúvida que sim. Portugal tem um potencial muito grande para liderar a transição para a economia circular, sendo a aposta nas energias renováveis uma das ferramentas de excelência.

Mas, para isso, é necessário desbloquear as diferentes sinergias que podem permitir a utilização de recursos em ciclos infinitos. É necessário que as diferentes cadeias de valor comecem a interligar-se para a valorização de resíduos, de forma a reduzir a quantidade de matérias-primas virgens utilizadas na produção de bens (ou mesmo serviços). No futuro, será essencial trabalhar-se no mix energético de longo prazo e não se estar apenas focado em transição energética de curto/ médio prazo.

É necessário que a legislação seja desburocratizada, sendo um dos exemplos a desclassificação de resíduos, que nos permitiria testar em escala a utilização de matérias-primas secundárias, permitindo entender o seu potencial para reduzir a pegada carbónica do país.

Obviamente que para este salto grande são necessários planos estratégicos de políticas públicas para a transição verde integradas em diferentes setores, que exista financiamento disponível para esta nova economia, bem como pessoas qualificadas não apenas para desenhar estratégias económicas evolutivas, mas também para a operacionalização das mesmas.

Devem ser criados mais apoios para que empresas possam caminhar para as zero emissões?

Nos últimos dois anos, a Beta-i tem estado no terreno a ouvir as empresas e os desafios relacionados com a temática maior da sustentabilidade. Com mais de 400 empresas ouvidas em diferentes pontos do país e em diferentes setores, é inegável que são essenciais mais apoios às empresas para que estas caminhem para a neutralidade carbónica, sendo estes instrumentos de diferentes naturezas. Estamos a falar de desenhos de quadros estratégicos de políticas públicas adaptadas às necessidades das empresas, de legislação mais ágil e menos burocrática, de capacitação em massa de quadros empresariais. Também falamos obviamente de financiamento para a transição, que deverá ser mais ágil e acessível também para as PME’s.

Atualmente, quais são os principais entraves à sustentabilidade?

Os principais entraves à sustentabilidade podem de alguma forma resumir-se nos pontos já identificados: legislação e compliance, governança pública, financiamento e qualificação de pessoas, devendo-se ainda juntar a questão da comunicação. Embora existam muitos apoios de capacitação às pessoas – programas estratégicos sectoriais desenhados com as diferentes entidades regionais ou mesmo fontes de financiamentos públicos e privados para a transição verde -, estes encontram-se dispersos e promovidos de forma pouco clara junto das empresas e cidadãos. Desta forma, impede-se a utilização em larga escala dos diferentes apoios já existentes.

Quais devem ser as prioridades em 2024?

Face à luz do quadro político que observamos em 2024 e à instabilidade observada em termos de políticas públicas com consequência direta nas emissões de gases de efeito estufa quer das empresas, quer dos cidadãos, as prioridades para 2024 devem estar centradas no desenho e implementação de medidas técnicas transversais que permitam que o país não diminua o seu desempenho climático. Nesse sentido, e considerando o index do CCPI, trabalhar nos pontos considerados prioritários poderia ser uma estratégia de sucesso, nomeadamente dando mais apoio às famílias de baixos rendimentos para a eficiência energética, uma eliminação progressiva e mais rápida dos subsídios aos combustíveis fósseis e melhorias de fundo no setor dos transportes públicos, permitindo reduzir-se a utilização de meios de transporte individuais.

As metas do Acordo de Paris são demasiado ambiciosas, tendo em conta o cenário atual das alterações climáticas?

As metas do Acordo de Paris foram desenhadas com base em dados científicos para assegurar que o impacto do aquecimento global não traria danos irreversíveis para o Planeta, para a Humanidade, bem como para toda a Biodiversidade terrestre.

Limitar o aumento da temperatura terrestre a 1,5ºC, tendo em consideração os valores da temperatura pré-era industrial, permitirá atuar a nível de diversos limites planetários, nomeadamente: assegurando que os eventos climáticos extremos sejam de menor intensidade e frequência; que se protejam  ecossistemas e as sinergias dos sistemas terrestres que asseguram o equilíbrio e a estabilidade térmica; que haja segurança hídrica e alimentar; que diminua a redução do risco de feedbacks climáticos (como o derretimento do permafrost e libertação de metano de depósitos, sejam estes terrestres ou aquáticos) e; que se reduza ao mínimo a subida do nível médio das águas do mar, com menor risco para as regiões costeiras.

O que assistimos atualmente é a que muitos dos limites planetários já estejam a ser ultrapassados, com graves consequências, tanto financeiras, humanitárias como de biodiversidade.

Nesse sentido, o compromisso com as metas estabelecidas deverá permanecer, devendo até ser reforçado, uma vez que desde 2015 o conhecimento evoluiu e os impactos aumentaram, não existindo hoje qualquer dúvida sobre o contexto de emergência climática em que nos encontramos.

Poderemos ter de redefinir metas mais realistas?

A minha perspetiva passa pela definição de quadros estratégicos mais sólidos, realistas e justos para a transição económica necessária à manutenção das metas do Acordo de Paris.

Não basta um Pacto Ecológico Europeu e pacotes regulamentares cada vez mais exigentes para “obrigar” países e empresas a serem mais sustentáveis. É necessário entender a forma de apoiar a transição sem deixar ninguém para trás, apoiando as empresas através de ferramentas que lhes permita ter equipas e pessoas capacitadas a encontrar soluções, atuando como catalisadores para a necessária transformação da economia e sociedade.

A necessidade de transformação do status quo atual é real e deve ser responsabilidade de todos (sejam países, empresas, pessoas, etc.). Nesse sentido, o que se deve encontrar são os espaços de entendimento das reais necessidades e construir ferramentas “à medida” para cada questão: a transição de um país emergente não será certamente igual à de um país desenvolvido; ou a necessidade de apoio a uma PME agrícola, não será certamente igual à de uma grande empresa do retalho.

E, se existir mesmo uma necessidade de redefinir metas “mais realistas”, na minha opinião, a redefinição seria tornar as já existentes mais exigentes, pois só assim, face à luz do conhecimento de hoje, conseguiremos diminuir o impacto das alterações climáticas que já testemunhamos.