Burocracia nos resíduos impede transição para economia circular, alertam especialistas

A economia circular é um tema que já existe há muito tempo, onde, na verdade, era praticado pelos antepassados mas, que, apenas, não se designava por tal. Foi então o ano de 2015 que marcou o início desta temática marcada, essencialmente, pelo plano de ação para a economia circular da União Europeia, pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ou pelo Acordo de Paris.

Luísa Magalhães, diretora executiva da Smart Waste Portugal, falou, esta quinta-feira, na primeira sessão – “Barreiras e oportunidades na economia circular” – do Ciclo de Conversas Circulares em Tempos de Pandemia, promovido pela associação Zero Desperdício

O atual modelo económico é baseado na “exploração de recursos” que, depois, são “transformados, usados, consumidos e depositados no ambiente” sob a forma de resíduos: “Trata-se de um modelo linear da economia que não é sustentável e que gera problemas ambientais”, refere. Por seu turno, a economia circular é um “conceito estratégico” que assenta na “redução”, na “reutilização”, na “recuperação” e na “reciclagem de materiais e energia” substituindo o conceito de “fim de vida” da economia linear por “novos fluxos” circulares: “É assim um modelo económico regenerativo e restaurador em que os recursos são geridos de modo a preservar o seu valor e utilidade por maior período de tempo”, declara. 

No âmbito da economia circular, Luísa Magalhães diz que o objetivo assenta, essencialmente, em “acabar” com o “conceito de resíduos”, querendo que estes sejam aproveitados e valorizados: “A economia circular visa uma uma ação muito mais ampla da questão da reciclagem, isto é, desde o redesenho dos processos, dos produtos e dos novos modelos de negócios até à otimização e utilização de recursos”. Posto isto, não restam dúvidas da “relevância” e dos “benefícios” da economia circular na “preservação do capital natural”, na “redução da extração de matérias primas virgens”, na “otimização do rendimentos dos recursos” promovendo a durabilidade, na “redução da produção de resíduos” e, também, na “criação de novos postos de trabalhos e novos modelos de negócio”. No ADN da Smart Waste Portugal estão precisamente os princípios orientadores da economia circular: “Promovemos uma estratégia colaborativa porque achamos que é por aqui a chave para a economia circular”. A “inovação”, a “investigação”, o “desenvolvimento” e, com isto, a “geração de novos negócios”, são  também palavras-chave na transição para a economia circular, sustenta.

No que diz respeito ao “estado de arte” da economia circular em Portugal, Luísa Magalhães aponta diversas lacunas que impossibilitam tal transição. Por isso, a “falta de robustez e de harmonização de dados”, ou a “colaboração” são, desde logo, entraves que precisam de ser colmatados: “A recolha de dados tem que ser igual para ser comparável. Temos de tentar desenvolver uma abordagem mais transversal e juntar os players da cadeia de valor”. E um bom exemplo que tem contrariado esta realidade é o Pacto Português para os Plásticos que estabelece várias metas, onde todos os associados lutam por um objetivo comum: “É importante não estarmos a trabalhar em capelinhas mas sim em conjunto”. A educação e a formação são, igualmente, conceitos muito importantes quer seja nas escolas, quer seja nas empresas: “Há uma necessidade muito grande de perceber este tema e a indústria tem uma papel importante nesta área”. Para a responsável, há ainda uma “falta de ligação” das universidades com as empresas: “É verdade que há projetos, mas não há divulgação e partilha. Há muito boas práticas que podem ser replicadas e o caminho deve ser por aí”. Depois, os “financiamentos” merecem também ser mencionados: “Já há muita coisa, mas as entidades já não sabem o que é que existe e não sabem como ter acesso aos mesmos”. 

[blockquote style=”2″]Há muito conhecimento e investigação que vem das instituições e que tem aplicabilidade no terreno[/blockquote]

Também Luís Veiga Martins, diretor de sustentabilidade da Nova Business School (NOVA SBE), não tem dúvidas sobre a importância da economia circular no sentido de promover a inovação, a criatividade e com isto novos negócios e empregos verdes. Para o docente, nos ODS existe já uma “linguagem universal” e uma “agenda comum” que “não está apenas nos Governos”, mas sim, “nos cidadãos que já há muito dão o seu contributo através das suas iniciativas”. 

Olhando para a componente industrial, Luís Veiga Martins atenta no facto de quando se fala em economia circular a tendência é pensar apenas no consumidor e, a seguir na reciclagem, sendo que a componente industrial é de extrema importância: “Muita coisa é feita e trabalhada tanto a nível de água como energia e, também, ao nível de resíduos”. A indústria tem assim o potencial de “promover simbioses industriais”, ou seja “parcerias entre os diversos setores económicos” em que, “o que é desperdício ou resíduo de uma indústria pode tornar-se matéria-prima” para outra: “Há que não esquecer nesta discussão a vertente do consumidor mas também a vertente industrial”, sustenta. 

Um outro contributo que também merece ser destacado é que a economia circular tem um “contributo relevante” para a neutralidade carbónica, sendo algo que está na agenda de todos: “Finalmente começa a dar grandes passos a nível de grandes setores, onde as grandes empresas podem influenciar as pequenas e médias e fornecedores de toda a cadeia de valor”, nota. 

No que diz respeito ao papel da universidade, Luís Veiga Martins constata que ao “nível do conhecimento, da disseminação do conhecimento e da investigação, há já muito trabalho que tem sido feito” e que merece ser “apoiado para ser possível identificar as oportunidade e as soluções” da economia circular. O docente lembra que Portugal está numa zona onde vai ter “escassez de água” e as empresas e os setores empresariais já estão a trabalhar na forma como se pode fazer a reutilização da água: “Há muito conhecimento e investigação que vem das instituições e que tem aplicabilidade no terreno”. 

Por fim, o docente reclama a importância de se ter “indicadores” que permitam “medir e quantificar” tudo aquilo que se faz: “Temos de ter indicadores e perceber qual o impacto que está a ser gerado e criado com o que está a acontecer ao nível da economia circular”.

[blockquote style=”2″]A empresa só é competitiva se for eficiente[/blockquote]

Sílvia Machado, assessora sénior para Ambiente&Clima da CIP (Confederação da Indústria Portuguesa), concorda com a importância da vertente industrial na transição para a economia circular, constando que as empresas estão comprometidas com esses objetivos: “Diria mesmo que sempre estiveram, podem é não ter sempre a noção clara da forma como contribuem ou como poderão contribuir mais”. E fazem-no não só pela “mudança de paradigma” ou pela “imposição regulatória da União Europeia”, mas também por uma questão de competitividade: “A empresa só é competitiva se for eficiente e a área da energia e dos recursos, da eficiência de materiais e da eficiência energética estão sempre nos objetivos primordiais de qualquer empresa que queira ser competitiva”, diz. Embora haja já regulamentação favorável à implementação de ações para aumentar a circularidade, Sílvia Machado afirma que há ainda muitos obstáculos regulamentares e muita burocracia associada ao resíduo: “O legislador ainda está muito agarrado à ideia do resíduo. E o resíduo deve ser olhado como um recurso e não como um perigo”. Ainda assim, mesmo ultrapassadas estas adversidades, Sílvia Machado destaca outros obstáculos ligados ao mercado: “Quase todas os investimento ao nível de medidas circulares, processos ou ecodesign de produto estão associados ao aumento de custos e esse aumento tem que ser refletido no custo do produto e o mercado ainda não está preparado”. Nestas matérias, a responsável reconhece que este desafio “pode e está a ser trabalhado” a “nível regulatório” como é o caso do “novo plano da economia circular da União Europeia” que dá grande importância aos “direitos e deveres dos consumidores”. Contudo, constata Sílvia Machado, “vai ser muito difícil regulamentar de forma eficaz para reduzir o consumismo desenfreado e acumulação de bens que existe”, sendo “características comportamentais que tardam a surtir efeitos”.

Outra questão tem que ver com os “novos postos de trabalho” que podem ser criados no âmbito da economia circular: “Aliados aos novos postos de trabalho que se podem criar, muitos postos podem terminar”, atenta. Por isso, “as empresas que existem precisam de se adaptar”, diz, defendendo a existência de “investimento” para que consigam fazer tais alterações: “Tem que existir um equilíbrio e garantir que essa ambição é feita de forma a não deixar ninguém de fora”. 

No que diz respeito à informação, Silva Machado reconhece que falta conhecimento sobre aquilo que é possível fazer ou mesmo para identificar aquilo que já se faz, havendo, por isso, a necessidade de se “divulgar e “promover maior conhecimento sobre o que é circular”, bem como “haver uma maior capacidade de ter indicadores para se tomar decisões bem informadas e fazer os investimento necessários” a nível de circularidade. É precisamente no combate a estas falhas que a CIP está a desenvolver o projeto E+C (Economia mais circular) que visa essencialmente fazer um levantamento do quadro atual ao nível de circularidade e a nível nacional de forma transversal. 

[blockquote style=”2″]Há muitas empresas que desconhecem que podem encontrar apoio e suporte nestas infraestruturas tecnológicas[/blockquote]

Para João Pimentel, diretor do IAPMEI (Agência para a Competitividade e Inovação), os valores são testemunha da dimensão economia alimentar: “88 milhões de toneladas de alimentos são desperdiçados anualmente na Europa”. Os números mostram, de verdade, a importância da transição de uma economia linear para uma economia circular: “Não temos dúvidas de que as empresas, as entidades, o Estado ou os cidadãos têm estado muito comprometidos com o tema”, indica.

Entre os desafios existentes, João Pimentel destaca os “bloqueios” relacionado com o quadro regulamentar: “A experiência que temos e aquilo que somos capazes de identificar – burocracia, morosidade nos processos e desequilíbrios – revelam também que podemos melhorar o quadro regulamentar para o futuro e criar um contexto mais favorável para as simbioses industriais e um conjunto de operações que concorram para favorecer a economia circular”.

Na dimensão do conhecimento, o diretor do IAPMEI também destaca a importância de se ligar o ecossistema empresarial à academia: “É essencial o conjunto de programas que têm favorecido esta ligação e o esforço deve ser em ato contínuo”. Também as “infraestruturas tecnológicas” que Portugal dispõe beneficiam esta transferência de conhecimento e de tecnologias para as empresas: “Há muitas empresas que desconhecem que podem encontrar apoio e suporte nestas infraestruturas tecnológicas”, atenta.

[blockquote style=”2″]Houve um crescimento desenfreado e selvagem que está a criar desequilíbrios na biosfera e que geram muitos problemas[/blockquote]

Para Álvaro Beleza, presidente da SEDES (Associação para o Desenvolvimento Económico e Social), a mudança de paradigma passa exatamente pela educação: “É nos mais jovens que se tem que ensinar a fazer economia circular. Vivemos numa sociedade do novo, da novidade, do crescimento económico e do usar e deitar fora”. Ainda assim, o responsável nota que a União Europeia, em termos globais, é a mais avançada nas políticas ambientais e na promoção da economia circular: “Só não defende estes princípios quem é inculto porque é tudo muito evidente”, afirma. No entanto, o presidente da SEDES alerta que tal pedagogia precisa de ser feita também na China, na Índia ou nos Estados Unidos da América (EUA), apelando a uma educação persistente: “Mudar mentalidades não é fácil e as pessoas preferem ter uma coisa nova e descartável porque acham que é mais seguro”. 

A situação atual, provocada pela Covid-19, que Portugal vive é “dramática” pelo que, Álvaro Beleza defende “políticas orientadas” no sentido do país conseguir ultrapassar este momento difícil e, ao mesmo tempo, ter um “crescimento robusto” numa “economia sustentável, amiga do ambiente e da saúde pública: “É o maior desafio da humanidade”, diz. E a forma como se cresceu no passado não pode ser replicada no presente: “Houve um crescimento desenfreado e selvagem que está a criar desequilíbrios na biosfera e que geram muitos problemas”, remata.

O Ciclo de Conversas Circulares em Tempos de Pandemia, promovido pela associação Zero Desperdício decorre até ao dia 8 de abril, às quintas-feiras, das 17h30 às 18h30. Todas as sessões vão trazer a temática da Economia Circular e Colaborativa para o centro das atenções, onde diversos oradores irão discutir as oportunidades da transição para uma economia circular.