“Carência de cursos técnicos e programas de formação”: o retrato dos Recursos Humanos nas Águas
Quase 99% da água que passa pelas torneiras das casas dos portugueses é considerada segura – é isto que os últimos dados de 2023 da ERSAR (Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos) indicam. E se toma por garantido um bom copo de água, também estará a tomar como garantidas as pessoas que permitem que este recurso seja próprio para consumo? O setor tem revelado, nos últimos anos, algumas dificuldades em contratar e fixar recursos humanos, mostrando preocupação com o futuro da gestão deste ativo tão precioso.
Há um tema que se tem tornado comum nos debates do setor da Água em Portugal: a escassez de recursos humanos e a falta de capacidade de reter os que ainda vão passando por lá. Além da necessidade de aumentar tarifas e de inovar as infraestruturas, as entidades gestoras expõem também esta problemática ligada ao fator “trabalhador”, essencial para assegurar a melhor e mais segura gestão da água que vai chegando às casas, restaurantes e inúmeros serviços.

Desde logo, a questão que se levanta é “como resolver?”. Mas também se questiona o valor dos recursos humanos para estas empresas, sendo que, de acordo com o PENSAARP 2030, estão afetos aos serviços de águas em Portugal mais de 15 mil profissionais. Ricardo Lopes, Diretor de Recursos Humanos da Aquapor frisa de imediato que “representam um dos pilares mais importantes para o sucesso de qualquer organização, já que desempenham um papel crucial não apenas na gestão das pessoas, mas também na construção e sustentação de uma cultura organizacional saudável, na melhoria contínua da produtividade e no alcance de metas estratégicas”.
Atualmente, o grupo Aquapor conta com 1.600 colaboradores, sendo que mais de 90% está em regime de contrato sem termo, “uma forma de lhes transmitir uma maior segurança, garantindo estabilidade e maior motivação”. E com um departamento exclusivamente dedicado aos recursos humanos, o próprio tem como funções o recrutamento e seleção de candidatos, a gestão de benefícios e a formação e desenvolvimento. Além disso, este núcleo responsabiliza-se pela implementação de iniciativas dedicadas à saúde e bem-estar dos trabalhadores, à gestão de carreiras e sucessão, à gestão de desempenho e avaliação e ao desenvolvimento de políticas que promovam um ambiente mais inclusivo e diverso.
Mas mesmo assim, “o setor enfrenta desafios significativos no recrutamento de novos profissionais, especialmente na área operacional”, revela Ricardo Lopes, explicando de seguida que essa dificuldade deve-se a diversos fatores, mas especialmente à “escassez de mão de obra qualificada”. A área operacional exige profissionais com conhecimentos técnicos especializados, como manutenção de redes, tratamento de água e gestão de sistemas hidráulicos – e estas especialidades são complicadas de encontrar no mercado por “haver uma carência de cursos técnicos e programas de formação dedicados a estas áreas”.
No caso da Aquapor, atualmente, a maior escassez de recursos humanos passa por eletricistas, área de manutenção no geral e área energética.

Com isto identifica-se o grupo INDAQUA, que revela desafios em reter nos perfis operacionais, seguindo a tendência do setor. Sendo uma empresa que integra mais de 100 funções diferentes, a verdade é que nos perfis técnicos e de gestão esta dificuldade não é tão expressiva: “acreditamos que o grupo INDAQUA tem afirmado, ao longo dos anos, uma marca forte no seu setor, o que gera a atratividade que sentimos e que se manifesta, por exemplo, num elevado número de candidaturas espontâneas e na elevada taxa de resposta às oportunidades de emprego disponibilizadas”, comenta Luís Lourenço, Diretor de Recursos Humanos e Comunicação da INDAQUA, acrescentando que a melhoria contínua das condições de trabalho, por parte da empresa, tem levado a uma quebra na rotatividade e ao regresso de antigos colaboradores.
A INDAQUA conta com quase 800 colaboradores, o dobro do que registava em 2018, sendo que a maioria encontra-se em contrato sem termo, refletindo “o compromisso com a manutenção de relações laborais longas e positivas, em que se valoriza a experiência, o conhecimento acumulado no seio da própria empresa e se potencia o crescimento contínuo”, afirma o responsável. Em 2024, o grupo apresentava uma média de antiguidade superior a 10 anos, revelando o seu esforço para a retenção de talento.
“Para garantirmos, com qualidade e eficiência, o abastecimento de água e a gestão de águas residuais a mais de 800 mil pessoas, em Portugal e além-fronteiras, é essencial contarmos com uma equipa vasta, experiente e multifacetada, mas também fortemente alinhada e comprometida com a visão estratégica da empresa”, explica Luís Lourenço. Por isso, “a equipa de recursos humanos está dedicada a acompanhar todo o ciclo de vida e desenvolvimento do colaborador dentro da organização”.
Mesmo considerando o setor atrativo para muitos profissionais, pois oferece a possibilidade gerar impacto direto e positivo na ambiente e na sociedade, o Diretor de RH da INDAQUA refere que existem áreas de atividade mais complexas, como a gestão de águas residuais, em que “a atração de profissionais qualificados se assume particularmente desafiante”.

Por seu turno, Carlos Vieira, Diretor Delegado dos SMAS de Sintra, considera que “o nível remuneratório da função pública causa muitos constrangimentos em todas as áreas, mas com mais incidência na parte operacional (canalizadores, eletricistas, mecânicos, cantoneiros) e nos técnicos superiores (engenheiros civis e engenheiros do Ambiente)”. No caso particular dos SMAS de Sintra, há maior dificuldade em contratar nas áreas de abastecimento de água, saneamento e resíduos, condutores de máquinas pesadas e veículos especiais, assistentes operacionais, canalizadoras e engenheiros civis, eletrónicos e de Ambiente.
À data de novembro de 2024, a entidade contava com um total de 1.026 colaboradores, todos sob contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, e com um departamento exclusivamente dedicado aos recursos humanos – este que é responsável, entre outras coisas, pelo recrutamento de novos aficionados, pela elaboração de planos de segurança e saúde para as obras a realizar, por ações no âmbito da psicologia e da psicossociologia, e pela elaboração de estudos e propostas de regulamentos relativos a admissões, mobilidade, férias, faltas e licenças.
Medidas e benefícios de captação/retenção de talento
Os SMAS de Sintra dispõem de várias medidas no sentido de valorizar os seus recursos humanos. Carlos Vieira destaca, por exemplo, o projeto de conciliação entre a vida pessoal e a vida laboral, que possibilita, entre outras, o reforço das soluções de teletrabalho. Depois há uma Bolsa de Formadores Internos, uma Bolsa de Mobilidade Interna, a promoção da formação, a Biblioteca SMAS, os Momentos de Cultura, os Percursos SMAS e a atribuição de medalhas a trabalhadores que completem 25 e 40 anos de serviço e aos reformados.
Quem trabalha nesta entidade, além do regime ADESE, beneficia de Medicina e Enfermagem do Trabalho Medicina de Clínica Geral e Curativa, Serviços de Psicologia, Serviço de Fisioterapia e Serviço de Ação Social. Na área da saúde, conta ainda com a possibilidade de administração da vacinação prevista no Plano Nacional de Saúde e da vacina da Hepatite A e B. No domínio das instalações, os trabalhadores dispõem de vestiários e balneários, refeitório, copa e bar, lavagem de fardamento e salas de convívio com televisão. Além disso, os SMAS de Sintra atribuem crédito de horas, 35 horas semanais, horário flexível e redução da duração do Período Experimental.
Na Aquapor também se tem implementado um conjunto de políticas, das quais fazem parte a Inclusão e Diversidade, Igualdade de Género e a Sustentabilidade. Os colaboradores do grupo contam, assim, com benefícios como programas de reconhecimento e recompensas, formação contínua, programas de liderança, flexibilidade de horário, teletrabalho, programas de saúde e bem-estar, através de protocolos com ginásios e seguros, e a possibilidade de participação nos lucros da empresa enquanto acionistas.
Por sua vez, a INDAQUA investe em seguros de saúde, num horário flexível, no teletrabalho parcial e na formação, essencialmente interna. “A cada dois anos, fazemos um levantamento exaustivo das necessidades formativas em áreas técnicas, competências comportamentais e transversais”, diz o Diretor de RH do grupo. “Atualmente, estamos, por exemplo, a delinear o portfólio formativo para os próximos anos, especialmente focados no reforço de competências de gestão e liderança”.
Valorização e “aproximação ao ecossistema universitário”

Nuno Campilho, vice-presidente da APDA (Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas), acredita ser “imperioso” as empresas do setor terem um departamento inteiramente dedicado aos recursos humanos, “não só no que diz respeito à gestão tradicional e burocrática, como no que diz respeito à área de formação”.
Concordando que as Águas enfrentam dificuldades em recrutar nas áreas técnicas mais específicas, “que requerem competências distintas e para as quais há cada vez menos pessoas disponíveis para as aprender e desempenhar”, Nuno Campilho reflete como a “tão propalada IA (inteligência artificial) ainda não desenvolveu as ferramentas tecnológicas para levar a cabo estas funções, que se não eminentemente humanas e, como tal, dificilmente possíveis de serem desempenhadas por máquinas”.
E neste sentido de urgência de promover a valorização dos recursos humanos no setor, o vice-presidente da APDA revelou que a associação está a prestes a celebrar um protocolo de colaboração na área formativa com a EPAL, por intermédio da sua Academia das Águas Livres (AAL), que visa “dotar os profissionais do setor das ferramentas necessárias para o desempenho das suas funções, com particular incidência para as áreas operacionais, através do recurso ao conhecimento prático e à sua partilha, de entre os profissionais do setor que integram as Comissões Especializadas da APDA, em articulação com a capacidade e know-how formativo, e com o repositório de conhecimento teórico incluso a AAL)”.
Ainda sobre este tema, Jorge Cardoso Gonçalves, presidente da APRH (Associação Portuguesa dos Recursos Hídricos), fala um pouco sobre um dos projetos da entidade, a Academia da Água (2023-2024) – uma iniciativa que envolveu mais de 100 oradores e mais de 40 entidades, com o objetivo de aproximar as universidades, os centros de investigação e as empresas – “uma das principais reflexões retirada das diversas edições desta Academia prendeu-se com a necessidade de inovar nos serviços de águas para atrair, capacitar e reter pessoas”.
“O PENSAARP 2030 inclui um objetivo dedicado à «sustentabilidade do capital humano», identificando como medidas o «reforço do capital humano do setor» e o «reforço da capacitação do setor». Este plano estratégico identifica, de forma sistemática, incentivos e estímulos para alcançar este objetivo”, completa o presidente da APRH.

Posto isto, acredita o responsável que a valorização dos recursos humanos pela pela “adequada gestão das suas carreiras, com sistemas de incentivos robustos e orientadores de comportamentos, que permitam melhorar o desempenho da empresa através da motivação dos colaboradores”. Além disso, é fundamental a capacitação de profissionais, “desejavelmente a um ritmo de 1.500 por ano”, mas também de decisores, como por exemplo, os autarcas.
“No caso particular dos jovens, num contexto de concorrência na sua captação e de facilidade de mobilidade internacional, as empresas do setor terão de ser atrativas e proporcionar-lhes uma oferta estruturada de carreira, com objetivos claros, oportunidades de progressão ou de mudança, remuneração e sistema de incentivos adequados, e formação contínua”, acrescenta Jorge Cardoso Gonçalves.
Já Nuno Campilho da APDA acredita que uma maior atração de mais talento para as Águas será “divulgando e promovendo as virtudes de uma carreira no setor, que, dada a sua heterogeneidade de funções, permite o enquadramento no desempenho de uma tarefa nobre, e antecipar um percurso profissional baseado no mérito, na construção de ferramentas e equipamentos específicos para o setor, e na inovação tecnológica, como sendo uma das mais visíveis conquistas da a investigação e desenvolvimento que têm sido protagonizadas pela larga maioria das entidades gestoras do país, que acompanham a evolução do negócio, acautelando o estabelecimento de modelos de gestão o mais coerentes possível com a localização geográfica, a dimensão dos serviços e o número de utilizadores”.
Este esforço, para além de outros caminhos, “pode e deve enveredar pela aproximação ao ecossistema universitário, através do estabelecimento de acordos de cooperação, que possam motivar a inserção no mercado de trabalho por parte de finalistas (estágios) e recém-licenciados (contratos de trabalho) em áreas core para o setor da Água e do Saneamento, com instituições universitárias cuja componente letiva e de investigação se centre nas novas tecnologias, na engenharia, na operação, na produção e na gestão”, reitera Nuno Campilho.
E com estes pontos concordam as entidades gestoras do setor e as que nesta exposição deram o seu parecer, como é o caso da Aquapor, da INDAQUA e dos SMAS de Sintra. Ricardo Lopes, Diretor de Recursos Humanos da Aquapor conclui o raciocínio afirmando: “é necessária uma abordagem estratégica, abrangente e inovadora, capaz de destacar os fatores positivos e significativos da área, nomeadamente o papel que o setor tem na preservação dos recursos hídricos, cada vez mais escasso, e no desenvolvimento sustentável. Importa também mostrar que é um sector em transformação, onde a inovação e a tecnologia tem crescido muito nos últimos anos, criando imensas oportunidades de aprendizagem e crescimento profissional”.
*Este artigo foi publicado na edição 109 da Ambiente Magazine