Todos os anos procuramos saber o que as cidades, principalmente as portuguesas, estão a fazer para caminharem rumo ao objetivo zero carbono, tão ambicionado até 2050. E fundamental é entender o que implica essa meta, passando pela gestão inteligente das cidades, desde os gastos de água, aos consumos de energia e aos tratamentos de resíduos. Mas também as novas tecnologias são uma peça imprescindível para um objetivo que está tão perto, mas ao mesmo tempo tão longe.
As smart cities ou cidades inteligentes são, segundo a definição da União Europeia, um conjunto de sistemas e de pessoas que interagem inteligentemente usando energia, materiais, serviços e recursos de forma sustentável, para beneficiar os cidadãos e os negócios. Ou seja, de forma muito simples, são cidades mais eficientes no seu global, que se apoiam essencialmente nas (novas) tecnologias para alcançarem metas ambientais e sociais.
Desde que a ONU (Organização das Nações Unidas) definiu os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), os mesmos tornaram-se um mote a seguir pelos territórios para tomarem decisões mais sustentáveis em diversas matérias, sejam elas em relação ao uso da água, ao combate às alterações climáticas e até à criação de igualdade entre géneros e entre classes sociais.
Mas como se estão a preparar realmente as cidades? Qual o atual cenário em Portugal? Que avanços foram feitos até à data de hoje? E para atingir a neutralidade carbónica tão ambicionada em 2050, que decisões são urgentes priorizar?
A Ambiente Magazine procurou junto de diferentes players de vários setores, responder a estas perguntas que vão ecoando ano após ano, na sede de obter resultados que diferenciem as cidades pelo seu grau de eficiência.

Neste sentido, o presidente do ISQ, Pedro Matias, começou por dizer que, de um modo geral, há “uma evolução positiva, nomeadamente em termos de existir uma maior atenção das entidades públicas e dos líderes autárquicos a todos estes aspetos [circularidade, transição energética, resíduos e água]”. Contudo, em termos efetivos, o grau de implementação em geral “é fraco ou moderado, na medida em que muito mais se pode fazer”.
No caso das cidades portuguesas, Pedro Matias acredita que as mesmas não ficam atrás de nenhuma cidade europeia ou até mundial. De um ponto de vista macro, todos os pressupostos nos 18 ODS da ONU “devem ser aplicados também às cidades enquanto territórios de convivência, de promoção de atividades sociais, culturais e económicas”.

Nuno Campilho, diretor de Comunicação, Marketing e Educação Ambiental da EPAL, segue o mesmo raciocínio, frisando um bom caminho que se está a fazer, “mas ainda pouco impactante”. “Centrando-me na cidade de Lisboa, que nos é mais próxima e em função da sua heterogeneidade, a falta de pontos de referência e de ligações comuns à população residente, à população que cá trabalha e àqueles que nos visitam, torna-se evidente na descaracterização da cidade, não contribuindo para o desenvolvimento de uma visão integrada e agregadora”.
Na visão particular da EPAL, a própria entidade, enquanto parceiro da autarquia lisboeta, tem desenvolvido ações de sensibilização e educação ambiental para a população, como são exemplos o Pátio da Água, a instalação de 200 bebedouros por toda a cidade e a campanha de incentivo ao consumo da água da torneira. “A nossa responsabilidade social e ambiental tem sido cumprida, assim outros players também o possam fazer, contribuindo para que o impacto destas premissas possam começar a ser sentido, de forma visível e consolidada”.
E o que não pode ficar esquecido, defende Nuno Campilho, é a “integração das diferenças, os gaps geracionais e adequada prestação de serviços – de excelência – à população, numa lógica de acessibilidade (física e económica), de sustentabilidade e de estímulo ao crescimento económico”.
Assim, para a EPAL, as ferramentas a serem reforçadas para atingir cidades mais eficientes são a competitividade, a prestação de serviços e a mitigação das alterações climáticas: “seria mais do que suficiente para garantir o sucesso”, sublinha o Diretor de Comunicação.

Já na perspetiva de Mafalda Silva, investigadora do INEGI (Instituto de Ciência e Inovação em Engenharia Mecânica e Engenharia Industrial), o financiamento é uma peça fundamental do puzzle para “alavancar uma sociedade de baixo carbono”, a par de uma economia assente em empregos e competências verdes.
A transição energética em meio urbano “deve ser centrada nas pessoas, não só como recipientes e beneficiárias, mas principalmente como agentes de mudança”, defende Mafalda Silva. “Deve ainda ser inclusiva, garantindo que os mais vulneráveis conseguem participar ativamente na mesma”, completa o pensamento.
Para a investigadora do INEGI, “a promoção de mecanismos de mercado e modelos de negócio sustentáveis e circulares é de grande importância”, por exemplo ao nível de comunidades de energia, reabilitação do edificado ou partilha de equipamentos e/ou serviços.
Além disso, a investigadora dá o exemplo da mobilidade nas cidades portuguesas: “os padrões de mobilidade atuais, amplamente centrados no veículo individual, são resultado de preferências e comportamentos profundamente enraizados em cada um de nós. É necessário um investimento contínuo no reforço da infraestrutura e da qualidade do transporte público, assim como dos modos suaves, de forma a dar alternativas reais aos cidadãos, e de forma a reverter o paradigma atual”.

Na opinião da Ubiwhere, empresa exclusivamente focada desde 2007 em I&I (Investigação e Inovação), “é preciso seguir um caminho de dedicação e investimento”. “As cidades portuguesas devem seguir o caminho da digitalização integrada e sustentável, com uma forte aposta na inovação tecnológica para apoiar a transição digital urbana”. Os CEO’s da startup, Rui A. Costa e Nuno Ribeiro, apoiam ainda a ideia de investimento em infraestruturas inteligentes e a atualização de plataformas de gestão urbana já existentes, através da implementação de novas funcionalidades.
No caso da cidade do Porto, a Ubiwhere tem implementado soluções que ajudam a gerir a cidade no que diz respeito a fornecer informações sobre incidentes e problemas climatéricos. De modo geral, “a transição digital ajuda os municípios a abrir os silos de informação que estão divididos por setores (mobilidade, resíduos, ambiente, etc) e o impacto ambiental é motivado pelos dados de análise de informação que deriva dos conhecimentos tecnológicos”.
“Através da sua Plataforma de Gestão Urbana, a Ubiwhere tem conseguido integrar novos dados provenientes de diversos verticais e aplicar serviços que procedem à evolução dos sistemas de análise de dados para uma melhor gestão de cidade”, explicam os responsáveis, acrescentando que “vetores como a educação para a sustentabilidade e a interação de cidadãos devem ser aplicados e não esquecidos”.
Além desta plataforma, a empresa acredita que outras ferramentas importantes para cidades mais eficientes passam pelo uso de gémeos digitais (digital twins), sensores IoT para a obtenção de dados em tempo real e algoritmos de inteligência artificial que permitam prever e otimizar o consumo de energia e a produção de resíduos: “a interoperabilidade entre estas tecnologias é vital para garantir que as soluções adotadas sejam funcionais e que possam ser integradas a diferentes sistemas e contextos”, frisa a Ubiwhere.
Posto isto, os responsáveis da startup creem que “estamos num patamar de maturidade tecnológica que permite uma aceleração significativa” no uso destas ferramentas nas cidades portuguesas.
Mesmo assim, Mafalda Silva, investigadora do INEGI aponta que “as principais barreiras continuam a ser, por um lado as questões de regulamentação e proteção de dados, a confiança da parte dos utilizadores e literacia digital, assim como a integração com os sistemas existentes ou de legado, a ampla escala”.
Já Pedro Matias, presidente da ISQ, afirma que o “único senão tenha a ver com a requalificação e upskill de competências que é preciso fazer em muitos dos recursos humanos que vão depois lidar e aplicar essas novas ferramentas” – o que acredita ser um desafio essencialmente direcionado para as autarquias e para os poderes locais. O presidente da ISQ ainda se posiciona a favor de evoluir mais rápido através do benchmarking, ou seja, “olhar para o que de melhor e mais eficiente se faz já hoje em dia em cada cidade e simplesmente aplicar isso nas outras”.
“O custo de nada fazer será sempre maior do que qualquer custo de investimento no imediato”
Apesar de ficarem evidentes as principais necessidades das cidades para se tornarem mais eficientes e inteligentes, tal como mencionou anteriormente Mafalda Silva, o financiamento é uma parte fundamental para percorrer este caminho. Deste modo, em que pé estamos em relação aos custos que acarretam estas mudanças tão urgentes e imprescindíveis?
A própria investigadora do INEGI admite que “os custos imediatos são tipicamente os mais visíveis e compreensivelmente aqueles que mais pesam na tomada de decisão”. Porém, se olharmos para o retorno a curto, médio e longo prazo, assim como para os benefícios sociais, os mesmos devem ser tidos em conta – nomeadamente, “a melhoria do conforto e qualidade de vida, a redução da poluição do ar, a melhoria de saúde e redução dos respetivos custos públicos e a valorização do património”, exemplifica.
De forma mais abrangente, “o investimento que ainda podemos fazer na mitigação das alterações climáticas, fundamentalmente em meio urbano, deve ser confrontado com os custos de adaptação, na ausência ou insuficiência de investimento em mitigação” (incêndios, cheias, ondas de calor).
Também a Ubiwhere reforça que os investimentos associados dependem sempre da escala de implementação. “O retorno é medido em termos de impacto que a tecnologia tem no seu quotidiano, quer seja em termos de eficiência das operações, em termos de tempos de resposta mais seguros ou em termos de qualidade de serviço e satisfação da comunidade”. Os responsáveis da startup ainda acrescentam que “tudo é medido, seja qualitativamente, seja quantitativamente, dependendo dos indicadores, do caso de uso da tecnologia e das prioridades estratégicas”.
Na opinião de Nuno Campilho da EPAL, o que algumas cidades carecem é de novas lideranças, “numa perspetiva estratégica de visão futurista, com as consequências que permitam justificar os ditos avultados investimentos que ainda faltam ser realizados”.
E Pedro Matias da ISQ resume a situação de forma muito simples: “o custo de nada fazer será sempre maior, em termos de impacto e de futuro, do que qualquer custo de investimento imediato”.
Neutralidade carbónica: utopia ou realidade?
E serão as cidades capazes de atingir a tão deseja neutralidade carbónica até ao curto prazo de 2050? Foi uma das perguntas que a Ambiente Magazine não podia deixar de fora da equação.
Para isto, a Ubiwhere olha como “um objetivo ambicioso e complexo”. Embora muitas cidades já estejam a dar passos nessa direção, a startup reforça a ideia de que “uma gestão mais inteligente dos recursos e a implementação de soluções digitais” leva as cidades a reduzir significativamente as suas emissões de carbono, a aumentar o uso de energias renováveis e a otimizar a gestão de resíduos.
“A colaboração entre empresas inovadoras e municípios é essencial para acelerar este processo. As ferramentas que a Ubiwhere potencia não só apoiam essa transição, como também consolidam uma base de dados que é usada para medir o progresso”, sublinham Rui A. Costa e Nuno Ribeiro.
Já para Mafalda Silva do INEGI, alguns municípios portugueses têm demonstrados elevados níveis de ambição e mostram-se verdadeiramente comprometidos em atingir a neutralidade carbónica nos próximos 25 anos. Nesta perspetiva, a investigadora exemplifica com cidades como Guimarães, Porto e Lisboa.
“De maneira geral, as metas de 2030 serão fundamentais de forma a avaliar a necessidade de medidas corretivas adicionais. Existe, de facto, um longo caminho a percorrer e é necessário redobrar esforços, principalmente em matéria de eficiência energética”, remata Mafalda Silva.
Por seu turno, o diretor de Comunicação da EPAL não tem dúvidas: a resposta é “terá de ser” uma realidade! “Como se verificou nestes últimos dias, alguns incêndios de maiores dimensões e durante um curto período de tempo, transformaram os dias em noites em algumas cidades portuguesas, tornando o ar praticamente irrespirável. Como se pôde ver, um fenómeno natural provocou este trastorno na vida dos nossos cidadãos”, constata. “Imaginem, então, isto de forma permanente, como se verifica em algumas cidades no resto mundo”, como Tóquio, Xangai, Singapura, Mumbai, Caracas e Buenos Aires.
“Estou convicto que ainda vamos a tempo de inverter este cenário”, observa, por fim, Nuno Campilho.
O tema das smart cities tem ganho destaque em Portugal através de um local de convergência e marketplace físico de criação de oportunidade para o mercado nacional e internacional – a Portugal Smart Cities Summit, que acontece anualmente em Lisboa, na FIL, sob o pretexto de juntar e desafiar os diferentes setores do funcionamento da sociedade e das cidades na agregação de valor com o mesmo objetivo de tornar as cidades portuguesas mais eficientes, mais inteligentes e mais neutras em carbono.
Neste momento combinatório de três dias, águas, resíduos, energias, autarquias, poderes locais, startups especializadas e muitos outros agentes comunicam entre si e partilham ideias, experiências e, sobretudo, ano após ano, evoluções positivas nas cidades onde atuam.
[Publicado na edição 107 da Ambiente Magazine]