Especialistas perspetivam o futuro do novo Pacto Ecológico Europeu 

O novo “Pacto Ecológico Europeu” ou “Green Deal” é a principal aposta apresentada pela Comissão Europeia (CE) em 2019 como sendo o principal eixo estratégico de emprego e crescimento da Europa até 2023. Assenta numa série de pilares, desde a neutralidade carbónica às energias renováveis, passando pela economia circular, biodiversidade e investigação. Além de significar um quarto do investimento da União Europeia, o “Green Deal” também se traduz noutros resultados esperados, como a “Lei do Clima”. Em torno do “Pacto Ecológico”, a BCSD promoveu um Webinar onde especialistas fizeram um “ponto de situação” do plano, realçando as “perspetivas futuras” do mesmo.

O que é o Pacto Ecológico Europeu e quais poderão ser as principais consequências da Covid-19

O “Green Deal” é visto como “uma resposta política” que a presidente da Comissão Europeia “quis dar a um novo contexto verde” que era manifesto na Europa. Esta é a visão de Humberto Rosa, diretor para o Capital Natural na Direção-Geral do Ambiente da Comissão Europeia, que em síntese reflete um “crescendo de atenção da opinião pública europeia” para a questão da “insustentabilidade climática” mas não só: “O ´Green Deal` veio pôr um enfoque noutras matérias ambientais que, às vezes, pareciam mais secundárias como a biodiversidade”, exemplifica. 

Mas o que vem o “Green Deal” dizer? Segundo este responsável, o acordo diz que se está perante uma “crise verdadeiramente ecológica”. Desde a primeira hora que este pacto é apresentado como uma “estratégia múltipla” proposta pela CE. Mas é também uma estratégia de crescimento verde, inovadora e social: “Tem um grande enfoque na transição justa, em não deixar ninguém para trás nestas mudanças que precisamos para uma Europa sustentável”, indica.  

Ainda antes da crise da Covid-19, Humberto Rosa recorda que estava “inerente” no ‘Green Deal’ a necessidade de “ter uma sociedade resiliente” capaz de “arcar com grandes problemas globais como as alterações climáticas”. É certo que a pandemia veio, de uma forma brusca, “congelar a atividade económica”, mas também criou “algo que já era evidente”, diz Humberto Rosa, referindo-se a um “novo paradigma”: “Afinal, a nossa sociedade, tão tecnológica e tão rica e desenvolvida, basta-lhe uma entidade que não chega a estar viva mas que é biológica para nos pôr todos em sentinela e em alerta total”. O dirigente acrescenta ainda a existência de um “claro elo” (da Covid-19) com a  biodiversidade: “A origem exata ainda não é conhecida mas parece estar cada vez mais substanciado que tem um elo com consumo de animais selvagens, a sua manutenção em condições deploráveis de higiene em certos tipos de mercados convivendo com animais domésticos; a reflorestação e redução de habitats ou reduzir a natureza e a populações naturais de animais”.

Não restam dúvidas do impacto desta pandemia na economia: “Fala-se de perdas de dois dígitos de PIB”, afirma Humberto Rosa, referindo que, em termos de prioridades, passam, desde logo por “proteger a saúde” e “manter os empregos ou salários”. No entanto, e de igual importância, está “reconstruir a sociedade com uma resiliência e uma robustez diferente”, afirma o responsável, salientando que “há uma origem recorrente de grandes ameaças pandémicas para haver o risco de disrupção social que este tipo de tema tem”. 

Perante a pandemia e os impactos que está a causar, Humberto Rosa evoca as várias vozes de setores a ponderar “parar” o ‘Green Deal´, mas de outros como agentes políticos, industriais ou parlamentares a afirmar que o Pacto Ecológico Europeu e a sua abordagem “tem que ser a resposta de recuperação. É através dos elementos verdes do ‘Green Deal’ e da digitalização que esta recuperação económica há-de ser construída”. Medidas que abrem muitos postos de trabalho de forma rápida, como “a renovação de edifícios e que está prevista no ‘Green Deal’”,  é uma das soluções apontadas pelo responsável.

“A política de ambiente na sua génese sempre foi de proteção de saúde humana”

Nuno Lacasta, presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), classifica o atual cenário como “mais uma oportunidade” para se refletir sobre “questões que se levantam” no âmbito da crise  mas também para haver “preparação” no pós-crise na “dimensão da sustentabilidade”.

Para o responsável, a pandemia de Covid-19 não é uma crise qualquer: “O impacto humano, económico e social é comparável a uma guerra como nunca aconteceu”. Este é o momento para que as sociedades “pensem em modos alternativos de organização” como, por exemplo, “sistemas de resposta rápida para epidemias; robustecimento do sistema de saúde; articulação de centros de investigação ou mesmo uma força de resposta rápida internacional e multinacional para situações desta natureza”.

O aquecimento global e as perdas de ecossistema são uma constante e, segundo Nuno Lacasta, já há noção de que estes temas “potenciam o aparecimento de doenças vetoriais”. Este responsável vai mais longe: “Há estudos que demonstram que certas doenças, que estavam congeladas, poderão ser libertadas no resultado do aquecimento global”. Por isso, “é preciso ter a noção de que a probabilidade de termos outras pandemias é hoje mais do que evidente. Estamos a viver a primeira”, sucinta.

Em relação à gestão da crise, Nuno Lacasta considera que a gestão dos resíduos é uma “matéria prática” em que tem que “haver consciência”: durante o estado de emergência, a “gestão do lixo não poderia ser feita como era anteriormente”, isto é, os atos de separação, recolha seletiva ou a recolha porta-a-porta foram alterados. A questão das “águas” também está a ser monitorizada “de perto”, afirma o responsável, que usa os dois serviços (recolha e gestão de lixo e abastecimento de água) para sublinhar o desafio no pós-crise: “Se é certo e necessário que em estado de emergência têm que se suspender práticas que tínhamos como comuns, isto não quer dizer que estas medidas de suspensão sejam aquelas que devam perdurar no pós-crise”. Nuno Lacasta atenta que “pôr de parte standards de sustentabilidade e de proteção ambiental” para efeitos de recuperação económica não é de todo a solução: “A política de ambiente, na sua génese, sempre foi de proteção de saúde humana”, sublinha

Se o Pacto Ecológico Europeu e o Roteiro para Neutralidade Carbónica assentam numa estratégia de sustentabilidade ambiental, Nuno Lacasta não tem dúvidas de que são também uma estratégia económica. “É absolutamente claro que, se por uma lado, a recuperação económica pós-crise deverá continuar a realçar a relação da saúde humana com o ambiente, também a sustentabilidade deverá ser central num pacote de recuperação económica que daqui resultar”. O presidente da APA considera que a recuperação económica será feita através de setores de mão-de-obra intensiva como a “construção”, ou seja, a eficiência energética através da “recuperação de edifícios”, sem esquecer que “a forma de repensar o território” será também central, referindo-se a um tema que merecerá debate: a  “produção alimentar de proximidade”. A visão de Nuno Lacasta incide na “oportunidade” que existe em “demonstrar que a recuperação económica, a criação de emprego, de bem-estar e de valor económico vem muito pela economia verde”.

No atual momento, a UE enfrenta “um teste fundamental à sua relevância no âmbito da gestão da crise”, considera o responsável, destacando a necessidade de “abordagem europeia” durante e no pós-crise. Mas a “descarbonização, a neutralidade carbónica ou a política industrial associadas ao ‘Green Deal’, assim como a sua implementação”, serão capazes de “demonstrar que, internacionalmente, é possível criar valor e riqueza” no espaço europeu. Assim sendo, Nuno Lacasta apela para que se reflita, no contexto do mercado interno europeu, sobre esta matéria e no incentivo a “políticas de proximidade”.

“Deve-se incentivar investimentos que ajudem na reconstrução económica” 

Também Ursula Woodburn, senior programme manager do Institute for Sustainability Leadership da University of Cambridge, afirma que, na essência, o “Green Deal” é uma “caixa de ferramentas” para uma sociedade resiliente, pelo que deve ser integrado, tal como as “ações pelo clima”, no “centro dos pacotes de estímulo económico”.

Quando se fala no pós-crise, a responsável considera que, nos “planos de recuperação, devemos olhar para gastos públicos como um investimento”, ou seja, devem ser “incentivados investimentos que ajudem na reconstrução económica”, exemplificando com o investimento em infraestruturas essenciais como os “transportes, energia e comunicações digitais, cuidados de saúde e na eficiência energética de edifícios”. 

Embora considere que “há aspetos que têm de ser atrasados” e “outros repensados”, Ursula Woodburn considera que o cenário traçado pelo “Green Deal” integra um tipo de “estratégias de crescimento” para Europa. “A longo prazo, conseguir-se-ão mais empregos e melhores cuidados de saúde”, afirma.

“O problema das alterações climáticas está intacto”

Já Filipe Duarte Santos, professor Catedrático da FCUL e presidente do Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CNADS), diz que a humanidade está confrontada com quatro crises: “Covid-19; crise das dívidas que o mundo inteiro enfrenta; crise ambiental e a biodiversidade; e as alterações climáticas”. Todas relacionadas, o docente acredita que merecem de uma “abordagem holística e integrada”. 

Relativamente ao ‘Green Deal’, Filipe Duarte Santos, afirma que se trata de uma questão positiva: “Estabeleceu um espaço económico e que dá uma relevância importante às questões ambientais”. Entre 1970 e 2014, foram identificadas “385 doenças emergentes”, afirma o docente, salientando a “relação degradada” da população com o meio ambiente.  O fim da crise trará uma nova etapa na relação entre a saúde ambiental e humana, um aspeto que será levado mais em conta. 

No entanto, esta crise demonstra a “grandeza do problema que a humanidade tem pela frente”, declara o responsável, salientando que, para se cumprir o Acordo de Paris, será preciso “reduzir por ano 6% de CO2 durante uma década”. De acordo com os últimos cálculos, está previsto em 2020 uma “quebra de 4% de CO2” em relação a 2019. Apesar desta quebra estimada, Filipe Duarte Santos afirma que a “concentração de dióxido de carbono na atmosfera vai aumentar”, pelo que o “problema das alterações climáticas está intacto. Não se pense que esta crise veio resolver o problema”.

O futuro é desenhado consoante as pessoas: “Se as pessoas forem conhecedores da problemática, eu penso que irão apoiar os dirigente da Comissão Europeia”, remata.