Fenómenos climáticos extremos: Como preparar os territórios?

O aumento da temperatura média global e da frequência e intensidade dos fenómenos climáticos extremos, como cheias e inundações são alguns dos principais efeitos das alterações climáticas. Dados do Instituto Português do Mar e da Atmosfera dizem que, em Portugal Continental, a temperatura média anual aumentou 0.3°C por década, desde os meados dos anos 70, e os valores anuais da precipitação diminuíram cerca de -20 a -25 mm por década, com os últimos 20 anos a serem particularmente pouco chuvosos. Os cenários futuros apontam que, num clima mais quente, estarão reunidas as condições para a ocorrência de mais eventos extremos e com um potencial mais impactante para a sociedade. Dois exemplos recentes destes fenómenos foram as chuvas intensas que causaram danos nas cidades de Lisboa e Porto. É sobre os territórios e como estes estão preparados para dar resposta a situações de crise, que tendem a ser cada vez mais frequentes e intensas, que nos debruçamos neste artigo.

É, essencialmente, na “adaptação às alterações climáticas” que a resposta se deve centrar, reduzindo “a vulnerabilidade da sociedade e do território aos efeitos negativos”, nomeadamente a maior frequência e intensidade de eventos meteorológicos extremos como “secas, ondas de calor, inundações, cheias e furacões”. Quem o defende é a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) que, em resposta enviada à Ambiente Magazine, acrescenta que a “adaptação” é também antecipar, planear, identificar e potenciar oportunidades que possam surgir dessas mudanças: “A adaptação planeada é mais eficaz do que a tomada de medidas reativas em emergência”. Tratando-se de eventos de “difícil previsão”, a não preparação dos territórios poderá resultar em “graves perdas de bens materiais e naturais, em descontinuação temporária de serviços públicos essenciais (água e eletricidade), ou, até, em perda de vidas”, acrescenta. A criação do Roteiro Nacional para a Adaptação 2100 (RNA2100), da responsabilidade da APA, em 2020, permitirá a definição de orientações sobre adaptação às alterações climáticas para o planeamento territorial e sectorial, procedendo à “avaliação da vulnerabilidade de Portugal às alterações climáticas, bem como a estimativa dos custos dos setores económicos na adaptação aos impactos esperados das alterações climáticas em 2100”.

Rui Godinho

“Menos chuva, mas com mais intensidade” é uma das frases que mais se tem ouvido por parte dos especialistas. Mas, como se explica este fenómeno? “São provocados pela rápida e intensa evolução das alterações climáticas, que progridem para perigosas situações de descontrolo, com especial incidência em diversas regiões do Planeta em que se inclui a Bacia do Mediterrâneo, em que nos situamos”, explica Rui Godinho, presidente do Conselho Diretivo da Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas (APDA), considerando que o aumento da incerteza e dos riscos, relacionados com “irregularidade” nas ocorrências de chuva e de secas tende a tornar-se sistémica. Assim, o especialista acredita que “o aquecimento global e o progressivo aumento dos níveis dos mares e oceanos provocados pelo degelo em curso, se não controlados, continuarão a potenciar, ainda mais fortemente, os fenómenos extremos que se multiplicam por todos os continentes”. Os territórios devem, por isso, estar dotados de “políticas públicas” que sejam capazes de dar resposta: “A água é o mais importante fator a ter em conta na definição e aplicação de estratégias e medidas que urgem para enfrentar os efeitos devastadores das alterações climáticas para a vida humana”, atenta.

Por seu turno, a preparação dos territórios pode variar. Mas, no caso da precipitação intensa e súbita, Luísa Schmidt, investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa), considera ser muito importante “regular os processos de infiltração e retenção das cheias ao longo de toda a estrutura das linhas de água”, além de “não criar fatores que agravam as consequências das cheias”, como “licenciar construções nas zonas ribeirinhas, nas margens dos rios e nas zonas costeiras” e “conhecer, comunicar e avisar as populações”. Apesar de se registarem evoluções ao nível da preparação dos territórios, havendo mesmo cidades em Portugal que “têm vindo a trabalhar há anos sistematicamente na adaptação aos impactos das alterações climáticas”. Contudo, há outras que “continuam a adiar medidas preventivas”, como o “recuo de construções e equipamentos que foram instalados sobre a linha de costa”, e outras ainda que persistem em licenciar empreendimentos em cima das zonas ribeirinhas: “Os exemplos estão à vista em Lisboa e Oeiras”, lamenta.

As barragens podem ajudar a minimizar os impactos das chuvas intensas?

Apesar da importância das barragens, a APA chama a atenção para o facto de que as estas estruturas “não produzem água”: Não é porque as construímos que automaticamente esse volume está garantido”. Além disso, “não evitam a ocorrência de cheias: apenas, dependendo das suas características, as minimizam”. A “variabilidade temporal” e “espacial” que existe no país (“Os recursos hídricos a norte do rio Tejo são superiores aos que existem a sul daquele rio”, explica) também é algo a ter em conta. Por isso, a APA atenta que o aumento da disponibilidade deve passar pelo “aumento da eficiência, interligação entre sistemas de maior capacidade de regularização com sistemas de dimensão pequena a moderada e comprovadamente mais suscetíveis a períodos de seca prolongada, aumento do armazenamento das barragens existentes, utilização de água para reutilização” e, só em último lugar, “a construção de novas barragens”.

Também Rui Godinho considera que estas estruturas integram uma componente fundamental de “regularização de caudais superficiais e armazenamento interanular dos recursos hídricos” indispensáveis à “segurança hídrica” nas bacias hidrográficas nacionais e transfronteiriças: “Constituem um elemento indispensável para o controlo de cheias a jusante em situações de muito elevada e prolongada pluviosidade e para garantia dos caudais adequados para obtenção dos caudais ecológicos em cenários de escassez e secas prolongadas”. Além disso, “os planos de água das albufeiras têm um efeito moderador nos picos de temperatura”, contribuindo para “criar ambientes promotores de qualidade vida”, refere o especialista.

Luísa Schmidt

Reiterando o importante papel das barragens enquanto “regulador”, Luísa Schmidt chama, contudo, à atenção para as “limitações” que, por exemplo, ocorrem muitas vezes durante o inverno quando “as albufeiras estão cheias e pode ser necessário fazer descargas”.

Inverno rigoroso pode ser motivo de confiança para um verão mais tranquilo quanto à disponibilidade de água?

Enquanto “recurso vital, escasso, estratégico e estruturante”, a APA defende uma utilização da água baseada em princípios de sustentabilidade e eficiência, “garantindo que, com a utilização da menor quantidade possível, se consegue realizar a tarefa ou processo, produzir eficazmente o bem ou prestar o serviço”, enquanto se garante uma “articulação coesa e estruturada com as restantes políticas setoriais” devido à “transversalidade a todos os setores”. Desta forma, “é nos anos em que existem mais disponibilidades que devem ser preparados os anos onde estas disponibilidades são mais escassas”, investindo numa “adaptação inteligente que tem de ir mais além do que o contínuo aumento de novas captações”, devendo a “eficiência e a reutilização” estar na primeira linha. Por isso, neste novo ciclo de planeamento das regiões hidrográficas, a APA considera necessário “mudar o paradigma”, apostando-se na “eficiência que leve, comprovadamente, à diminuição dos volumes de água naturais captados”, estimulando “a eficiência, a adequação das culturas” e a “aposta de novas origens” de água.

Para Rui Godinho, a gestão dos armazenamentos que se produziram com a chuva registada nos primeiros meses do Ano Hidrológico 2022/2023 deve ser acompanhada com cuidado: “O facto de, em algumas “Bacias Hidrográficas”, não se ter cuidado em tempo de reforçar os caudais afluentes a albufeiras já existentes (Sado e Mira, nomeadamente) e a manutenção do silencio oficial sobre a inequívoca decisão de construção das Barragens do Alvito e Girabolhos, que urgem, continua a ser motivo de preocupação”.  Quanto a disponibilidades a garantir futuramente, o Presidente do Conselho Diretivo da APDA atenta nos “recursos hídricos subterrâneos”, cujos “aquíferos interagem com importantes disponibilidades superficiais”, nomeadamente nas “Bacias Tejo/Sado, Mira e Arade”, e que apresentam “sinais inequívocos de sobre-exploração”, sendo “urgente agir política e legalmente”. “A imprevisibilidade, mais do que a incerteza, mantém-se, pois não está afastado o cenário de próximas situações de escassez e seca em Portugal, já que estamos situados numa das regiões do Planeta mais sensíveis a tais ocorrências, que é Bacia do Mediterrâneo”, refere.

Créditos: Filipa Brito / CMPorto

Apesar da chuva que se fez sentir neste inverno, Luísa Schmidt chama a atenção para que não haja “ilusões”, até porque “todos os cenários indicam que a tendência no Sul da Europa” e, sobretudo, no “Sul Ibérico” é clara: “Cada vez menos precipitação e temperaturas mais altas e, portanto, secas e escassez”.  A primeira coisa a fazer é “reduzir os consumos”, principalmente, no “setor responsável por mais de 70% dos gastos: a agricultura” e, depois, “aumentar exponencialmente a reutilização de água tratada”, sucinta.

Lisboa e Porto: Que lições devemos tirar?

É verdade que as cidades estão a adotar estratégias de mitigação para responder aos frequentes fenómenos extremos. Mas também existem problemas estruturais que tornam os territórios portugueses pouco resilientes a estes episódios. Os casos mais recentes ocorridos no Porto e em Lisboa são um exemplo. Analisando o fenómeno ocorrido na capital, “torna-se indispensável conhecer o que faz com que uma comunidade seja mais vulnerável do que outras, para que se possam determinar os passos necessários para a redução do risco”, descreve o Serviço Municipal de Proteção Civil de Lisboa (SMPC) numa resposta enviada à Ambiente Magazine, lembrando que, durante o episódio meteorológico, “vimos pessoas perante um túnel ou uma estrada inundada a avançar e a ficar lá, vimos edifícios, lojas, caves em locais historicamente vulneráveis a inundações, mas sem qualquer sistema de proteção adicional, como sistemas vedantes para as portas, e que, outrora, eram habituais, sacos de areia ou barreiras anti inundação”, além de, em alguns casos, não terem qualquer tipo de seguro. Esta realidade leva à conclusão de que as populações e entidades públicas não estão preparadas: “Toda a administração falha porque permite, por ação ou omissão, que tudo se faça, se construa, se reconstrua, se altere, sem qualquer fiscalização e obrigação de implementação de medidas mitigadoras do risco, pois este não o vamos conseguir afastar totalmente destes locais”, considera a SMPC, acrescentando, no entanto, que há “erros do passado” de “planeamento e desenvolvimento urbanístico das cidades” e das próprias “condições naturais do local onde acontecem”. No entanto, o sistema funcionou: a “ausência de perdas humanas” e uma relação de “complementaridade entre a autoproteção e as operações de socorro” revelou uma “evolução no ordenamento do território e uma cidade mais resiliente”. A “implementação efetiva de Gestão de Risco” é uma das lições a tirar, considera a SMPC, acrescentando que é necessário “investir mais na implementação das medidas e ações de adaptação para cada um dos principais riscos climáticos sinalizados na região”, através do “plano metropolitano de adaptação às alterações climáticas”. Admitindo que parte deste trabalho pode estar feito, o SMPC de Lisboa considera que “poderá tentar-se fazer mais. Estamos num processo de melhoria continua e de evolução tecnológica”, frisa.

Filipe Araújo

Já o município do Porto tem seguido uma estratégia de mitigação e preparação contra fenómenos extremos de precipitação bastante intensificada: “Importa, contudo, salientar que as características dos meios urbanos são propícias a fenómenos como as cheias”, refere o vice-presidente da Câmara Municipal do Porto, Filipe Araújo, dando como exemplo, a “impermeabilização dos solos ocorridas durante décadas, decorrentes do crescimento das cidades”, conduzindo a “uma diminuição da capacidade de infiltração no solo das águas superficiais e consequente aumento dos volumes drenados nas infraestruturas de drenagem dos caudais pluviais”. Entre as várias medidas já implementadas, o também presidente da Águas e Energia do Porto destaca a existência de equipas permanentes de “limpeza de sarjetas e limpeza urbana”, assegurando “o bom funcionamento das redes de drenagem”, reforçadas em caso de eventos meteorológicos. Além disso, “a Águas e Energia do Porto dispõe de ações diárias de desobstrução de órgãos de recolha de águas pluviais e varejamento dos coletores em toda a cidade, ações intensificadas nas zonas mais críticas”. A empresa municipal tem também vindo a implementar um conjunto de ações de monitorização das redes de drenagem, tendo recuperado a função de “guarda-rios”, para “efetuar a monitorização ambiental dos cursos de água a céu aberto, permitindo uma deteção mais célere de eventuais anomalias ao livre escoamento das águas”, e pondo em marcha o “Plano de Valorização e Reabilitação das Linhas de Água do Município do Porto” para “promover a proteção e valorização dos rios e ribeiras da cidade” e uma “melhor adaptação aos efeitos das alterações climáticas”. Além de tudo isto, o Plano Diretor Municipal 2021 integra a vertente do ambiente e qualidade de cidade, com o objetivo de a tornar “mais verde e mais azul, valorizar a estrutura ecológica municipal como elemento fundamental do território”, afirma Filipe Araújo. Os cidadãos são também chamados a participar nesta estratégia, através do Pacto do Porto para o Clima.

Créditos: Nuno Correia/CML

*Este artigo foi incluído na edição 98 da Ambiente Magazine