#Grande Entrevista: “O oceano é o suporte de vida básico no planeta”

Não é possível desenvolver uma economia que não seja sustentável ou desrespeitadora do ambiente e da fragilidade dos ecossistemas marinhos, mais ainda quando as alterações climáticas estão a ameaçar cada vez mais os oceanos. A economia do mar pode ser assim uma “chave” no combate à crise climática. Esta foi uma das posições defendidas por Assunção Cristas, professora da NOVA School of Law e Coordenadora do Mestrado em Direito e Economia do Mar, em mais uma Grande Entrevista à Ambiente Magazine. Nesta conversa, entre muitos temas, abordaram-se as ameaças e soluções prementes ao oceano e qual o caminho a seguir rumo a uma economia azul.

  • Quando se fala em “Economia do Mar”, normalmente também se fala em “Economia Azul”. Como define estes dois termos? Considera que são conceitos que deveriam andar sempre de “mão-dada”? Porquê?

É muito interessante que coloque esta questão porque é, precisamente, um dos temas que abordo com os meus estudantes da cadeira de Maritime Policies. Eu uso o termo “economia azul” como sinónimo de economia sustentável do mar, ou seja, abarca todos os setores da economia do mar, mais antigos ou mais recentes contando que desenvolvidos de acordo com as melhores práticas de sustentabilidade. O primeiro texto internacional que refere “economia azul” neste sentido é, precisa- mente, a Declaração de Lisboa que encerrou a Reunião Ministerial da Semana Azul (junho de 2015). Se passarmos os olhos pelos relatórios internacionais sobre o tema, mesmo da Co- missão Europeia, vemos que “economia azul” e economia do mar aparecem muitas vezes como sinónimo, sem distinguir a questão da sustentabilidade. Por isso começou a aparecer a expressão “economia azul sustentável”, que para mim é uma redundância, se é azul, é sustentável. O conceito é simétrico ao de economia verde: a “economia azul” é a economia verde do oceano. Mas percebo que o léxico é variável, por isso convém ter o cuidado de perceber se estamos todos a falar do mesmo.

  • Qual o potencial da Economia do Mar em Portugal? Quais são os setores / áreas da Economia do Mar que têm maior potencial de crescimento em Portugal? Qual o peso da Economia do Mar no Produto Interno Bruto?

Assunção Cristas, junto ao Moma e ao Tejo, em Lisboa.

Portugal foi pioneiro na criação de uma conta satélite do mar, que espelha o peso da economia do mar na economia portuguesa. Os estudos preparatórios iniciaram-se em 2013 e os primeiros dados saíram em 2016, embora reportando-se ao período 2010-2013. Depois infelizmente só voltaram a sair o ano passado, reportando-se a 2018. Foi pena não ter havido uma recolha contínua de elementos. Em todo o caso, estamos muito à frente da generalidade dos países e somos apontados como caso a seguir pela OCDE. Os dados mostram que a economia do mar vale cerca de 5% do PIB português, o que é bastante. São dados pré-pandemia, naturalmente sofreram um abalo, até porque o maior agregado é a parte relacionada com o turismo, mas comparativamente com outros países a economia do mar tem mais peso entre nós.

  • A Economia do Mar é sustentável em Portugal?

Há bons exemplos de sustentabilidade e não tenho qualquer dúvida de que o caminho é no sentido de termos setores cada vez mais sustentáveis. Estou a aplicar o termo sustentabilidade no sentido triplo: económico, social e ambiental. Seria muito bom que a conta satélite do mar pudesse distinguir o peso do que podemos considerar sustentável e do que ainda está a fazer o seu caminho para medirmos se estamos a progredir no sentido da “economia azul” fagocitar a economia do mar. Já fomos pioneiros na criação da conta satélite do mar, seria excelente se pudéssemos dar este salto qualitativo. Está em preparação a inclusão do valor do serviço dos ecossistemas, o que é um excelente passo. Faltará mais este. Implica muito trabalho, mas penso que não será im- possível, até porque vários organismos internacionais, na senda da aprovação do Objetivo do Desenvolvimento Sustentável 14, têm feito um esforço de densificação sobre o que podemos ou não considerar sustentável. Portugal foi um dos países que mais se empenhou para que em setembro de 2015 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovasse este objetivo, autónomo dos restantes dezasseis. Temos a obrigação de fazer todos os esforços para o aplicar e isso também implica termos boa informação estatística. 

  • Como é que a pesca e a aquicultura podem ser uns bons aliados no desenvolvimento da Economia do Mar?

Assunção Cristas, junto ao Moma e ao Tejo, em Lisboa.

A pesca e a aquacultura, partes fundamentais da economia do mar, desempenham um papel crucial. Repare que de acordo com a FAO, em 2050 seremos cerca de 10 mil milhões de pessoas a habitar o planeta. Precisamos de usar os recursos que temos com cuidados redobra- dos e garantir que conseguimos alimentar a população de forma condigna. O oceano é uma fonte excelente de proteína animal e vegetal, sob os vários pontos de vista, nomeadamente ambiental. O desafio o é pescar cada vez melhor, de forma mais sustentável e seletiva, garantindo a capacidade de renovação das espécies, e fazer uma aquacultura sustentável, amiga do ambiente, como a multitrófica ca integrada ou 100% biológica off-shore. Em Portugal temos um grande défice na balança comercial do pescado essencialmente por duas razões: consumimos muito peixe per capita (disputa- mos os lugares do pódio, a nível mundial), e a maior parte desse peixe é bacalhau, do qual a nossa quota de pesca é uma pequena fração. Importamos por isso muito pescado e ainda produzimos pouco. O peso da aquicultura em Portugal ainda é muito baixo, quando comparado com o mundo ou mesmo com a Europa. É um caminho que podemos e devemos trilhar até porque a aquacultura sustentável é uma forma muito relevante de contribuirmos para o desafio alimentar global. 

  • Atualmente, quais são as ameaças que a Economia do Mar enfrenta? E quais as soluções a adotar?

Assunção Cristas, junto ao Moma e ao Tejo, em Lisboa.

O oceano está profundamente ameaçado pelas alterações climáticas, poluição (de plásticos, mas não só), acidificação (fruto, nomeadamente de absorver os excessos de temperatura do globo ao longo das décadas) que levam a uma perda da biodiversidade e comprometem o seu papel de suporte de vida no planeta. A economia do mar, se bem dirigida na diversidade dos seus setores, pode ser uma chave para resolver vários destes problemas. Não é possível desenvolver uma economia não sustentável, desrespeitadora do ambiente e da fragilidade dos ecossistemas marinhos. As soluções passam, pois, por usar do melhor conhecimento disponível, melhorá-lo continuamente, lançar mão das ferramentas tecnológicas e digitais para podermos criar uma nova economia do mar e reconfigurar a antiga, à luz de critérios de sustentabilidade. 

  • A falta de literacia sobre a Economia do Mar e sobre os seus intervenientes pode ser uma ameaça? De que forma? E o que é urgente fazer para combater esta “barreira”?

Recentemente, no relatório da Missão Star-fish (2020), encomendado pela Comissão Europeia ao abrigo do programa que elegeu oceano e a água como um dos cinco desafios societais da Europa, concluiu-se que os europeus têm escassa sensibilidade e conhecimento dos temas do oceano e é urgente inverter esse ponto. Não é por acaso que um dos pilares do Plano de Ação para o Atlântico 2.0 é precisamente o incremento da literacia azul. Neste domínio, Portugal tem feito um bom trabalho, por exemplo, com a criação do Kit do Mar, há mais de dez anos, que depois deu lugar às escolas azuis que neste momento estão a inspirar a ampliação a toda a Europa. Mas há muito mais para fazer, desde a mais tenra idade, mas sem desistir de informar e sensibilizar as pessoas de todas as idades. Um ponto centrar é levar as pessoas, efetivamente, a tomarem contacto próximo, físico, com o oceano, porque, como diz o ditado, longe da vista longe do coração. Há muito a fazer para tornar o mar presente em todos os níveis de ensino. Ao nível do ensino superior penso que o grande desafio é colocar em diálogo muito do que já existe e progredir em conjunto, numa lógica muito interdisciplinar. É o que procuramos fazer, por exemplo, no nosso Mestrado em Direito e Economia do Mar. É muito interessante notar, por exemplo, que no recente relatório da UNESCO Portugal é o segundo país a nível mundial com mais investigadores na área do mar por milhão de habitantes, logo a seguir à Noruega. Isto é mais uma prova de que a nossa relação com o mar não é algo “romântico” como às vezes oiço, temos vários indicadores que nos mostram como comparativamente com outros países damos mais importância ao mar. Falta conseguir comunicar tudo isto. 

  • Como é que avalia os investimentos que são feitos em Portugal no âmbito da Economia do Mar? O que é que falta ao nosso país?

Portugal tem bons exemplos em vários domínios, das energias oceânicas renováveis (eólica já em fase de escalar, outros projetos em estudo e desenvolvimento) à aquacultura sustentável ou mesmo alguns casos de biotecnologia marinha, só para referir alguns exemplos. Mas falta-nos escala: precisamos de mais capital e mais empreendedores e empresários a trabalhar e investir nestes setores. Isso implica um esforço de captação de investimento externo e interno, alinhando políticas, instrumentos de financiamento e melhorando o funcionamento dos processos e da administração pública. 

  • Como é que se investe no Mar sem prejudicar o meio marinho? Que equilíbrio é preciso ter em conta?

A lei de bases de ordenamento e gestão do espaço marítimo, aprovada em 2014, é cristalina neste ponto: só é possível desenvolver atividades no mar desde que garantida a manutenção da qualidade do ambiente marinho. O desafio é, pois, o de garantir que são usadas as melhores práticas para não perigar, pelo contrário, manter ou melhorar o ambiente. Ferramentas como o ordenamento do espaço marítimo, a criação de áreas protegidas (mas efetivamente protegidas e geridas de acordo com um plano), a procura de compatibilização de usos e criação de sinergias são cruciais.

  • Qual deve ser o papel do setor privado e do setor público na promoção e no desenvolvimento da Economia do Mar?

Assunção Cristas, junto ao Moma e ao Tejo, em Lisboa.

O setor público deve definir a estratégia e alinhar prioridades, nomeadamente para efeito de captação ativa de investimento direito estrangeiro (nomeadamente desenhando setores e levando a cabo missões externas com envolvimento dos vários níveis, do político ao diplomático e ao técnico), cabe-lhe puxar pela investigação científica, nomeadamente alocando recursos financeiros, e criar condições regulamentares e de funcionamento da administração que favoreçam a inovação e o empreendedorismo. Cabe-lhe ainda valorizar e acarinhar o setor, nomeadamente alocando todos os recursos financeiros disponíveis com e ciência e celeridade. Ao setor privado cabe organizar-se para ajudar na definição as políticas, no aproveitamento dos recursos financeiros e na criação de parcerias com a Universidade e demais organismos públicos para elevar a ambição e criar valor assente na inovação e na ciência. 

  • Em Portugal, há apoios su cientes para se investir na Economia do Mar?

Entre os fundos nacionais e os fundos geridos a nível europeu, há montantes consideráveis a serem aproveitados. Por vezes não há conhecimento su ciente dos mesmos e a complexidade burocrática é muito desincentivadora. Ao mesmo tempo, penso que é preciso a pedagogia dos bons exemplos: quanto mais casos de sucesso existirem e forem divulgados, mais aparecerão e então mais recursos deverão ser alocados.

  • O Mar é incontornável para uma Europa que se quer azul, digital, social e global”. Esta afirmação é do ministro do Mar. Concorda? Porquê?

Assunção Cristas, junto ao Moma e ao Tejo, em Lisboa.

O oceano é o suporte de vida básico no planeta. Sem um oceano saudável e produtivo (e não será produtivo se não for saudável e vice-versa), a prazo, não é possível vivermos na terra. O oceano fornece-nos oxigénio, absorve carbono, produz alimento, dá-nos energia renovável, gera emprego, transporta mais de 90% do comercio global, é crucial para o bem-estar físico e espiritual, através do turismo, do desporto ou da mera contemplação. O oceano é o primeiro e melhor fator de ligação de todo o mundo, seja através da navegação, seja dos cabos submarinos que garantem que a informação passa por todo o mundo. Um mundo que desconsidere o oceano é inimaginável.

  • Há quem diga que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), não deu o devido valor ao Mar. Pode comentar?

Eu própria fiz esse comentário num texto que publiquei na minha crónica semanal no DN. Poucos meses depois de ter sido colocado à discussão pública a Estratégia Nacional do Mar 2021-2030, a versão inicial do PRR omitiu o mar quase totalmente. Muitos se indignaram e foi, entretanto, anunciado a inclusão de um capítulo dedicado ao mar com alguns investimentos previstos. Penso que se poderia ter ido mais longe, mas é um começo. Portugal tem sido liderante na agenda global do oceano, avançou em vários domínios e é apontado como um bom exemplo. Isso também cria a responsabilidade de fazermos tudo o que está ao nosso alcance para ajudar a economia a estar ao nível da nossa ambição de sermos atores globais nos vários domínios do oceano.

Este artigo foi publicado na edição 88 da Ambiente Magazine.