#GrandeEntrevista: “A transição energética já está em curso e, acredito, nada a pode travar” (Parte II/II)

Esta é a segunda e última parte da Grande Entrevista que a Ambiente Magazine fez a Nelson Lage, presidente da ADENE.

  • A Comissão Europeia tem em curso o Pacto Ecológico com uma estratégia de crescimento sustentável que, por meio de investimentos em tecnologias verdes, pretende transformar a Europa numa sociedade mais justa e próspera. Neste âmbito, que papel desempenha a indústria?

Para alcançarmos a ambição do Pacto Ecológico Europeu, é essencial a transformação industrial, que deve ir além das energias renováveis, da eficiência energética ou da mobilidade elétrica. A indústria, em especial a que tem consumos intensivos de energia, deve ter a ambição de poluição zero, e apostar na economia circular e limpa.

A ADENE tem prosseguido o seu trabalho no sistema de gestão de consumos intensivos de energia, acompanhando mais de mil operadores industriais, na implementação de planos de racionalização energética. Nos mais de 12 anos de gestão do Sistema de Gestão dos Consumos Intensivos de Energia (SGCIE), conseguimos alcançar poupanças que, em média, são na ordem de 200 mil toneladas equivalentes de petróleo por ano, o equivalente a 7% do consumo total das instalações registadas.

Nestes últimos meses, a pandemia trouxe novos desafios, mas graças à articulação da ADENE com os operadores e a DGEG, foi possível adaptar procedimentos e prosseguir sem sobressaltos no funcionamento do sistema. Também aqui, com base na experiência adquirida na gestão operacional deste sistema, foi possível avançar com propostas de otimização que, numa revisão futura do quadro legal aplicável, poderão aprofundar o contributo do SGCIE para a redução da fatura energética das empresas e da indústria do país.

  • A transição energética traz muitos desafios, um deles social. Acha que é possível não deixar ninguém para trás? Não há um perigo de aumentarmos a taxa de desemprego em virtude destas mudanças?

A transição energética já está em curso e, acredito, nada a pode travar. Como diz, temos pela frente enormes desafios e um deles será a necessária formação dos trabalhadores com vista à sua reconversão para novas profissões.

Penso que, neste caso em concreto, existem políticas que vão acautelar uma transição mais suave. Como sabe a União Europeia criou o Fundo de Transição Justa, que tem por objetivo, precisamente apoiar as pessoas e as regiões mais afetadas por esta transição que tem por objetivo a neutralidade carbónica na Europa até 2050.

Este Fundo europeu, que disponibiliza 242 milhões de euros para Portugal, vai permitir que muitos trabalhadores possam aceder a programas de requalificação, ao mesmo tempo que vai financiar a criação de novos postos de trabalho nos setores económicos emergentes. Na transição energética tem de existir consciência social e responsabilidade. Só assim ninguém ficará para trás.

  • A recente revisão da legislação sobre o desempenho energético dos edifícios levantou muitas dúvidas e críticas. O que fez a ADENE?

É verdade que o Decreto-Lei n.º 101-D/2020, trouxe algumas mudanças para entidades e profissionais que intervêm na construção e reabilitação de edifícios, e trouxe igualmente uma série de dúvidas e reclamações. Não sendo a ADENE o legislador, o nosso papel aqui foi o de, enquanto entidade gestora da Certificação Energética dos Edifícios (SCE), promover sessões de esclarecimento sobre a nova legislação.

No que se refere à nova Lei dos Técnicos SCE, a Academia ADENE colaborou na respetiva redação, ao mesmo tempo que elaborou uma série de trabalhos preparatórios para dar resposta às competências de reconhecimento profissional dos vários técnicos SCE, que lhe foram atribuídas.

Aqui quero destacar no âmbito da formação de técnicos do SCE, a Academia ADENE realizou múltiplas ações de formação gratuitas a mais de mil técnicos Peritos Qualificados, contribuindo, assim, para o reforço das suas competências no âmbito da Revisão Regulamentar do SCE.

Porque consideramos importante a relação da ADENE com as diversas ordens profissionais foram igualmente realizadas sessões de esclarecimento da nova legislação do SCE, junto da Ordem dos Arquitetos, Ordem dos Engenheiros e Ordem dos Engenheiros Técnicos.

Também não esquecemos os municípios e os técnicos municipais e por isso promovemos igualmente sessões de esclarecimento. De referir que os municípios são as entidades responsáveis pelo controlo prévio de operações urbanísticas e devem adaptar os seus procedimentos em conformidade com as novas exigências da lei.

  • Vivemos um período conturbado. Os jovens alertam para a emergência climática ao mesmo tempo que responsabilizam os governos pela inércia em defesa da sustentabilidade do planeta. Em seu entender a transição energética é também um choque de gerações?

Há uma certeza que eu tenho: sem a ação dos jovens o tema da sustentabilidade não estaria, como está, nas prioridades dos governos. É a geração mais jovem que não se tem cansado de alertar o mundo, em especial os países mais poderosos e poluentes, para as alterações climáticas e para esta emergência global que estamos a viver.

Jovens como a Greta Thunberg continuam nas ruas com uma mensagem muito clara para os líderes mundiais: atuem agora para salvar o nosso planeta porque é o futuro da humanidade que está em causa. Julgo que esta pressão dos mais jovens é muito positiva para todos, porque é verdade que atrasar a ação climática coloca em risco a sobrevivência da humanidade.

Agora, uma coisa são as muitas manifestações justas e necessárias, outra é a liderança política. São os líderes de todo o mundo que são responsáveis pela transição climática. São eles que legislam, financiam e que devem mudar o paradigma. Em democracia são as instituições e os Estados, os responsáveis pela mudança política. Cabe aos jovens não deixar cair por terra as suas reivindicações.

Por acreditar nos alertas dos jovens, a ADENE, no evento de comemoração dos seus 20 anos, chamou os mais novos, colocando-os ao nível dos dirigentes e especialistas. Eles foram chamados para os painéis de discussão, estiveram em destaque nos Prémios ADENE e tiveram a oportunidade de escrever artigos de opinião na nossa Cápsula Temporal. Acredito que a transição energética e climática só terá sucesso com o envolvimento de todos.

  • Em 2022 a ADENE vai assumir a presidência Rede Europeia de Energia (EnR). Quais são os seus objetivos?

Esta é uma responsabilidade enorme. Na presidência da EnR queremos contribuir, junto dos nossos parceiros europeus, para a concretização das metas estabelecidas no European Green Deal e na “onda de renovação” de edifícios da União Europeia, porque só com edifícios renovados e sustentáveis teremos um continente com energia verde e descarbonizado, e como sabem os edifícios na Europa são responsáveis por mais de um terço das emissões da EU.

Queremos igualmente alertar para a importância da aposta nas Comunidades de Energia Renovável e fazer uma avaliação comparativa do estado de pobreza energética, nas suas diversas formas, nos países que constituem esta rede europeia. Pretendemos ainda desenvolver um estudo sobre o Nexus Água-Energia com soluções inovadoras de financiamento.

Aproveitaremos a presidência portuguesa da EnR para sensibilizar os nossos parceiros para a necessidade de criação de iniciativas de cooperação e parcerias com países africanos, e também de encontrar formas de comunicação com os mais jovens.

É nosso objetivo coordenar a atuação das agências europeias de energia, contribuindo para a melhorar a competitividade de rede e definir a melhor forma de garantir que a eficiência dos recursos é utilizada para o bem de todos os cidadãos.

  • Qual será o papel da Academia ADENE em 2022? Que projetos estão em marcha?

Para 2022 pretendemos que a Academia ADENE foque a sua atividade na dinamização de novas ações de formação com conteúdos formativos que incorporem a nova legislação do SCE porque sentimos que este é um tema que vai continuar a despertar muitas questões. Para além desta formação específica, vamos disponibilizar os respetivos exames de qualificação dos técnicos SCE.

Em 2022, queremos reforçar o papel da Academia ADENE no desenvolvimento da sua oferta formativa em formato de e-learning, bem como apostar na formação das energias renováveis e na gestão de energia de edifícios e indústria.

É também nossa intenção prosseguir a componente de formação à medida. Pretendemos reforçar a cooperação nacional e internacional e dar seguimento ao que fizemos em 2021, em que a Academia ADENE realizou um curso presencial de Gestão de Energia no Setor das Águas em Cabo Verde. O reforço da cooperação e da criação de novas parcerias com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa é uma das nossas prioridades.

*Esta entrevista foi publicada na edição 91 da Ambiente Magazine.