“Hoje só há mais água quando há melhor governança”

Contribuir para que as políticas da água se possam tornar mais adaptáveis, resilientes, flexíveis e eficazes é a grande missão da Associação Portuguesa dos Recursos Hídricos. Isso mesmo afirmou Susana Neto, a nova presidente da APRH, em Grande Entrevista à Ambiente Magazine, que não hesita em defender uma associação “mais interveniente e de voz mais ativa”.

Qual o enquadramento e objetivos da APRH hoje? Mantém as linhas mestras aquando da sua criação?
A associação foi criada em 1977 e, na altura, o enquadramento político e administrativo das questões da água era diferente. A APRH tinha o sentido de estimular um pensamento interdisciplinar de todos os assuntos relacionados com a quantidade e a qualidade das águas interiores, estuarinas e costeiras, tanto superficiais como subterrâneas e tinha vários princípios que a moviam: promover o progresso do conhecimento e o estudo dos problemas relativos aos recursos hídricos; fomentar e apoiar iniciativas, cooperando com as entidades interessadas na criação de estruturas institucionais para a discussão das políticas da água; apoiar e participar em ações de formação e difundir conceitos básicos.

Desde 1977 houve grandes mudanças e tivemos várias gerações de políticas da água. Uma alteração fundamental foi a entrada de Portugal na CEE, quando as políticas da água passaram a estar muito mais inseridas nas questões ambientais. Depois tivemos a década de 90 com a primeira grande Cimeira de Desenvolvimento Sustentável, no Rio de Janeiro que trouxe, através da Agenda 21, a água para um plano de discussão novo, foi talvez a consolidação desta ideia de que a água não é dissociável do desenvolvimento e do desenvolvimento sustentável em particular.

A nível europeu, os programas-quadro de ambiente e desenvolvimento sustentável e a aceitação de certos princípios fundamentais como o princípio da corresponsabilização, do poluidor-pagador e do utilizador-pagador, constituíram um enquadramento importante.

Uma grande mudança de paradigma foi a aprovação da Diretiva Quadro da Água (DQA), em 2001. A partir dessa altura houve uma alteração substancial no entendimento das questões da água, colocando a questão da qualidade num patamar diferente, da qualidade ecológica e não apenas da qualidade físico-química.

A APRH é uma associação que tem um caráter interessante porque é uma associação muito profissional e técnica mas não deixa de ser também uma associação não-governamental de ambiente. Mas como todas as associações, tem sofrido algum desgaste e dificuldade em manter um ritmo que acompanhe todas as coisas que vão acontecendo. Esse é um dos desafios. Como manter o mesmo nível de interesse, de debate e de participação presencial, quando as pessoas, hoje em dia, têm muita informação disponível através da Internet.

Qual a principal missão da APRH?
A principal missão da APRH é difundir conceitos e princípios de boa gestão da água. Ser um parceiro sempre disponível para apoiar a sociedade em geral e também o poder político, em tudo aquilo que promova a capacitação nacional em termos técnicos, científicos e cívicos, para um bom desempenho ao nível da gestão da água e também uma participação mais informada e ativa. Nos dias que correm, esta missão tem que ser muito adaptada a um contexto de mudança constante e de imprevisibilidade. As alterações climáticas, a crise económica, as mudanças demográficas a nivel global, são aspetos em que a governança da água tem que ser capaz de acompanhar as mudanças.

Eu diria que a missão da APRH, da forma que interpreto hoje, será muito mais a de colmatar a dificuldade dos governos e das instituições que têm as suas orgânicas mais rígidas e em que não é fácil a adaptação em tempo real. E em contribuir para que, neste contexto de mudança permanente, as políticas da água se possam tornar mais adaptáveis, resilientes, flexíveis e eficazes.

Qual deve ser o papel da APRH na sociedade, no setor ambiental e em particular no setor das águas?
Muitos dos nossos associados desempenham papéis na administração pública, universidades, corporações ou organizações e, portanto, há um grande conhecimento técnico e científico por trás da massa associativa.
Isto permite à APRH ter um papel social muito informado e informativo.

A governança da água não pode ser perspetivada apenas nos setores que a gerem como um recurso. Temos que hoje em dia advogar uma abordagem ‘fora da caixa’. Isto não significa excluir os setores que utilizam água, mas sim inclui-los de uma forma mais abrangente. Tem que haver mais qualquer coisa além do somatório das partes, que se traduz exatamente nessa capacidade de adaptação a situações inesperadas.

Que oportunidades existem para esse desígnio?
Eu diria que a principal oportunidade em situações de crise é a possibilidade de mudança. Se olharmos para as dificuldades atuais, em termos económicos, de esgotamento dos recursos naturais, de acesso aos bens fundamentais e da escassez da água que, por vezes, é socialmente produzida, temos dificuldade em ver oportunidades. No entanto, os vários atores envolvidos são forçados a mudar as suas estratégias e isto pode criar novas possibilidades e abrir caminhos à inovação. A boa utilização dos recursos e das sinergias entre parceiros são imprescindíveis para uma boa governança da água, a par de metas claras de política por parte do Governo, uma noção muito bem estruturada do nosso enquadramento e posicionamento ibérico-europeu e uma eficaz internalização dos princípios internacionalmente acordados. Julgo que estamos numa situação em que é bastante viável e possível evoluirmos para uma espécie de “pacto social das águas”, traduzindo o entendimento nacional em torno dos grandes objetivos que devem nortear instrumentos como o plano nacional da água por exemplo. Este entendimento transversal é aquilo que um país consciente e politicamente amadurecido como o nosso, poderá fazer com os seus recursos hídricos.

Quais as questões críticas em cima da mesa e atividades que a APRH pretende continuar ou fazer evoluir?
Estamos num novo ciclo de implementação dos planos de gestão de região hidrográfica e do plano nacional da água. Este processo de planeamento e a sua articulação com os instrumentos de gestão territorial constituem uma questão muito relevante para nós. A APRH tem mantido uma atitude de defesa da interdisciplinaridade e da transversalidade mas ainda não levou a fundo a questão da integração territorial que eu gostaria de deixar como trabalho feito neste mandato.

Por outro lado, entender a questão da água como uma questão social e política, muito mais do que uma questão técnica. As questões técnicas serão complementares, são formas de solucionar, mas a questão no seu todo envolve toda a sociedade. A gestão de situações imprevisíveis é realmente uma questão crítica face a problemas extremos (secas, cheias, incêndios e contaminação de meios hídricos superficiais e subterrâneos) que assolam o nosso país e que carecem de uma abordagem muito preventiva, antecipativa e adaptativa, a qual só pode ser levada a cabo num processo politico e de planeamento intensamente participativo.

A APRH conta com um novo conselho diretivo. O que a levou a liderar este projeto?
O desafio. Tenho uma longa carreira em termos de Administração Pública e académica e a minha grande preocupação foi sempre a de procurar estabelecer “pontes” e como operacionalizar a “integração” através da articulação de instrumentos de planeamento de gestão. Este processo iterativo que caracteriza a abordagem integrada, reincorporando os efeitos e os resultados, é qualquer coisa que está aquém e além dos próprios governos: depende muito da forma como a própria arquitetura institucional funciona, como as agendas se operacionalizam e como os vários atores comunicam. Fazer com que esta abordagem integrada e intersectorial seja efetivamente operacionalizada foi um dos desafios que me moveram, sem dúvida.

Que marca é que gostaria de deixar na Associação em 2020?
Para já, uma APRH mais interveniente e de voz mais ativa, mas sempre plural. Uma cultura de abertura e diálogo permanentes, com uma visão mais interdisciplinar e transdisciplinar que favoreçam uma discussão mais aberta e fora dos setores tradicionais.

O setor das águas nos anos mais recentes tem assistido a um discurso político/técnico que incide em abordagens integradas. O que isto significa e como se podem operacionalizar?
Portugal tem uma experiência muito interessante e muito bem-sucedida nos últimos 40 anos em termos de serviços de águas nas áreas urbanas. Conseguiu passar de um patamar muito fraco na prestação destes serviços para um patamar de excelência e é hoje um exemplo a nível internacional. No entanto, há outros usos de água importantes que não são urbanos. Os setores agrícola e industrial têm as maiores utilizações e torna-se necessário incluir todas as utilizações sob uma abordagem integrada com referência à escala territorial da bacia hidrográfica, para efeitos desta análise de disponibilidades e necessidades. Acredito que a dimensão dos “recursos hídricos” deve por isso ser considerada a par da dimensão dos “serviços de água”, com vista a esta visão holística.

Por outro lado, a operacionalização de abordagens integradas depende muito da capacitação técnica e organizativa, carecendo de uma aprendizagem permanente em todas as instituições: governamentais e da Administração Pública, de gestão técnica e até nas universidades. Uma cultura de gestão integrada e a sua efetiva operacionalização dependerão de ser adotada uma abordagem de referência territorial mais coerente na bacia hidrográfica, assim como de uma efetiva capacitação para trabalhar nesse sentido.

Eficiência é sinónimo de eficácia no setor da água? Que desafios existem num setor praticamente controlado por entidades públicas e gerido também por políticas públicas?
Quando falo em políticas públicas usaria o termo eficácia. Julgo que seria um erro avaliar as políticas públicas com base apenas em critérios de eficiência, de custo-benefício, por exemplo. A eficácia que se pretende nas medidas propostas pelo Governo está para além desta avaliação da eficiência. Por vezes, até pode ser mais eficaz e não ser eficiente. A eficiência não é suficiente, em termos de políticas públicas é preciso atingir eficazmente as metas que são propostas (em termos sociais, económicos e ambientais). Enquanto a eficiência depende de uma visão mais limitada no tempo, a eficácia carece de uma visão de longo prazo. Estes critérios alargados para além da dimensão económica não estão suficientemente caracterizados e esta é uma área em que a Administração Pública deve investir mais.

A distinção de quando e em que termos é que é preciso ser eficaz ou não, é algo que deve ser feito num contexto de governança. É necessário ter os ecos dos vários parceiros. Por exemplo, um agricultor precisa de utilizar a sua água de forma eficiente para ter menos custos de água e de energia. Mas o Governo pode estar a pensar em questões mais estruturais como a PAC, por exemplo e tem que obter uma aplicação eficaz de um determinado instrumento de incentivo financeiro, na prossecução desta política. Se os dois forem surdos aos objetivos que cada um persegue, obviamente que há qualquer coisa que não vai funcionar. E esta conciliação não é simples: gera conflitos, expectativas que não podem ser satisfeitas e alguém, o Governo, tem que decidir qual é a prioridade em determinado momento, aplicando o seu poder discricionário, mas ouvindo e atendendo aos anseios e expectativas dos vários utilizadores.

Esta negociação faz parte da governança da água. Neste sentido, eficiência e eficácia não são sinónimos, são antes complementares. A aplicação e a avaliação de políticas depende seriamente de sistemas continuados de recolha de dados, observação e monitorização. Sem esta base fidedigna de informação, também será muito difícil pensar em políticas eficazes ou ações e planos que sejam eficientes. Por outro lado, a transparência e partilha de informação, a concertação entre entidades, a articulação de sistemas de informação diferentes, constituem desafios importantes que carecem de atenção, investimento e coordenação.

Olhando para o nosso contexto das águas nacionais e de outros países com um grau de desenvolvimento similar, para onde aponta o caminho: mais água ou melhor governança?
A água que temos é sempre a mesma, não podemos aumentar a sua quantidade. Temos é que gerir bem as escalas temporais e espaciais que a utilizamos. Podemos conservar e preservar em alguns sítios e depois
utilizá-la um pouco mais a seguir. Todo este balanço está dependente do conhecimento que temos sobre os dados hidrológicos, ambientais e climáticos.

Hoje em dia, diria que só há mais água quando há melhor governança e, por outro lado, é a conservação que faz aumentar os recursos. Esta governança depende de formas mais concertadas entre os diversos parceiros, de informação fidedigna, de mais participação, de mais transparência e conhecimento da sociedade sobre o que se passa, que água está disponível e de como utilizá-la, quais os impactos de utilização desta ou daquela forma, tanto em termos individuais ou de organizações. Esta avaliação tem de ser muito bem fundamentada em termos técnicos, científicos, ambientais e sociais, investindo em todas as formas de conhecimento sobre o ciclo da água: como é que os recursos hídricos ocorrem, como é que circulam e se conservam nas bacias hidrográficas, nos reservatórios artificiais, nas lagoas naturais e no próprio solo.

Este balanço global tem de ser feito e constitui informação fundamental para se poder decidir em determinados contextos o que será mais favorável para todos os utilizadores. Obviamente que é importante conhecer também as expectativas de uso por parte das comunidades e dos setores económicos, para se poder dizer se essa água está disponível ou não e como é que podemos também prolongar a sua utilização no tempo, através de um uso mais responsável. Prolongar ‘a vida útil da água’ é aumentar a sua disponibilidade e tornar o seu uso mais sustentável. Ainda temos muito que fazer nesta matéria. Praticamente todos os nossos sistemas urbanos são de utilização e desperdício, nós deitamos água fora, não reutilizamos quase água nenhuma.

Quais as prioridades que devem ser consideradas na política da água em Portugal?
Que as políticas da água sejam socialmente inclusivas, desenvolvidas com grande participação da sociedade, com o conhecimento de todos os impactos e consequências, e que tenham uma visão de longo prazo. As políticas da água não podem ser pensadas a curto prazo e, embora saibamos que isto é difícil, tem de se pensar em planos de continuidade para além dos ciclos governativos. As políticas de ambiente, de ordenamento do território e da água deveriam ser equacionadas a longo prazo.

No contexto atual, consideramos igualmente muito importante que as políticas da água sejam eficazes e garantam a capacidade de adaptação às mudanças imprevisíveis, no sentido de resiliência e da sustentabilidade.

Por outro lado, que estas políticas consigam ter um grau de eficácia maior, sendo efetivamente enquadradas numa perspetiva ibérica e europeia. Não podemos ter uma política da água apenas nacional. Neste sentido, deverá ser aberto e alargado o debate sobre os aspetos em que a Diretiva Quadro da Água (DQA), assim como a Convenção de Albufeira, carecem de revisões ou de alguma reformulação para serem mais coerentes com as necessidades e características naturais, económicas e sociais do país. Seria igualmente uma boa oportunidade para informar e envolver os cidadãos no diagnóstico dos problemas da água e nos processos de planeamento dos recursos hídricos.

Há uma consciencialização de todos os players sobre estas matérias?
Infelizmente, não há essa consciencialização ao nível da complexidade atual dos problemas e de tudo aquilo que é preciso em termos de aprendizagem e capacitação técnica, para uma efetiva abordagem intersetorial e interdisciplinar. Mas diria também que hoje em dia, vejo os nossos colegas, alunos e até pessoas de outras áreas e sem ligação ao mundo profissional da água muitíssimo mais conscientes sobre as questões da água. Há muita informação que acaba por passar mesmo fora dos meios técnicos e das universidades.

Quando há problemas como a seca, muitos dos municípios tiveram que apelar a poupanças da água e as pessoas aderiram. É fácil consciencializar sobre um bem vital como é a água. A APRH está sempre disponível para apoiar nesta missão, mas reconhecemos que há ainda muito para fazer no que toca a iniciativas estruturadas para a consciencialização e uso responsável deste bem natural, social e económico.

Em síntese, ao nível das políticas públicas do Estado e ao nível da governança, há que tornar mais efetivo e eficaz, esse envolvimento de todos os atores, incluindo os ecossistemas, promover diagnósticos mais participados dos problemas e necessidades, promover processos de planeamento mais inclusivos e articular melhor as diferentes agendas setoriais, através dos instrumentos de gestão territorial. Tudo isto irá certamente no sentido de mais consciencialização de todos os atores, sem esquecer que todas estas propostas para uma boa governança da água ficam igualmente muito dependentes da capacidade da Administração Pública em estabelecer metas a mais longo prazo e de articular as diferentes políticas para além dos seus ciclos governativos.

* Esta entrevista está publicada na edição 78 da Ambiente Magazine.