José Furtado: “Constatamos um setor com um padrão de qualidade e desempenho de excelência no contexto europeu” (I)

Há três décadas que é gestor tendo percorrido diferentes setores de atividade. Exerceu funções de administração de instituições públicas, financeiras, grupos empresariais e escolas de gestão. O seu percurso profissional levou a cruzar-se inicialmente com a Águas de Portugal há 20 anos, mas foi há três que recebeu o convite para liderar o Grupo que emprega 3.700 pessoas e conta com 17 empresas que atuam de norte a sul. Aceitou sem hesitar, com o entusiasmo de quem conhece as potencialidades e os desafios estratégicos. Atribui especial importância ao modelo e boas práticas de governação corporativa, num universo empresarial amplo, fortemente implantado no território e um leque muito diversificado de “partes interessadas”. Numa Grande Entrevista à Ambiente Magazine, José Furtado falou da ambição do Grupo AdP – Águas de Portugal, desde a resiliência às alterações climáticas aos investimentos necessários noutros domínios da sustentabilidade no setor.

Fazendo uma retrospetiva desde 1993, aquando da constituição do Grupo, qual tem sido o caminho trilhado pelo setor da água em Portugal?

Importa fixar como pano de fundo a realidade no setor do abastecimento e saneamento de água em Portugal há 30 anos. Nessa altura, ocorreu a possibilidade de mobilizar fundos europeus para corrigir o gap de desempenho relativamente à Europa. Confrontava-se, porém, a dificuldade em assumir metas e objetivos perante um setor tão fragmentado e de responsabilidade difusa. Na prática, com exceção da EPAL, a gestão de água estava cometida essencialmente a três centenas municípios, o que abriu caminho à criação do Grupo Águas de Portugal para promover a infraestruturação na dimensão industrial do ciclo urbano da água, solução que veio revelar-se extremamente feliz. O modelo permitiu compatibilizar os interesses dos municípios e as vantagens de proximidade na atividade de distribuição em baixa, com a intervenção de uma entidade do Estado Central com capacidade para executar o programa de investimentos, gerar economias de escala, promover a partilha de conhecimento e enfim assegurar o cumprimento das metas contratualizadas.

Como define o estado da arte deste setor?

Ao viajar no tempo, percorrendo os últimos 30 anos, constatamos um setor com um padrão de qualidade e desempenho de excelência no contexto europeu. Na qualidade da água de abastecimento, 98,96% de água da torneira controlada e segura, quando em 1993 era cerca de 50%. Na cobertura dos serviços de saneamento, 86% de alojamentos servidos por sistemas públicos de recolha e tratamento de águas residuais, quando em 1993 era cerca de 30%. Destaco ainda as externalidades na saúde pública, no ambiente e nas águas balneares, com perto de 400 praias com Bandeira Azul. Finalmente, na plena abrangência nacional do serviço, com impacto nos cidadãos, na economia local e na coesão regional.

Sendo já notórias as evoluções, como é exemplo a excelente qualidade de água em todo o país, nota-se uma certa “estagnação” no setor, nomeadamente na infraestruturação obsoleta que não permite dar resposta a uma série de desafios, como as perdas de água. O que está na origem desta e de outras estagnações no setor da água?  

O setor da gestão da água, globalmente, é muito heterogéneo, incorporando o que decorre das assimetrias regionais, designadamente entre regiões de maior ou menor densidade populacional, para além da especificidade dos diferentes usos.

As disparidades que refere, em matéria de perdas de água, incidem sobretudo nas redes municipais de distribuição em baixa. O impacto das alterações climáticas vem conferir maior visibilidade às debilidades e suscita uma atuação concertada de diferentes entidades para promover a eficiência hídrica em todas as regiões do País. Pela nossa parte, temos disponibilizado a partilha de competências e dos sistemas extremamente eficazes da EPAL e nalguns casos intervimos em parceria com os municípios no âmbito de sistemas agregados.

Os municípios têm um papel fundamental na promoção da acessibilidade à água. Como tem sido desempenhado este papel? O que falta para ser desempenhado em plenitude?

A responsabilidade pela gestão de água no setor urbano é partilhada em “alta” entre o Estado Central, através da Águas de Portugal, e os municípios, sendo que estes dispõem de soluções institucionais alternativas “em baixa”, designadamente com o envolvimento de entidades privadas ou mediante parcerias com a AdP.

O testemunho que temos é extremamente positivo relativamente ao modelo instituído, consubstanciado em 13 empresas regionais, envolvendo mais de 200 acionistas municipais.

Acredito que se registarão progressos significativos, atendendo à crescente sensibilização para a necessidade de alcançar melhores níveis de desempenho hídrico, de profissionalização da gestão e de reforço competências críticas, num contexto em que se perspetiva o acesso a fundos estruturais.

Em relação ao consumidor final, seja ele doméstico ou industrial, nota algum tipo de preocupação crescente com o setor?

Relativamente à procura, a prioridade está no uso racional e parcimonioso da água. Esta evolução com incidência em investimentos nas atividades económicas e de comportamentos individuais resultará em poupanças que vão contribuir em muito para a gestão da escassez.

É preciso acelerar esta pressão sobre o lado da procura? 

Sim, temos recorrentemente feito campanhas de sensibilização para o valor da água, para estimular a poupança e para o consumo da água da torneira, normalmente nos períodos do ano em que por força das circunstâncias existe maior predisposição à alteração de comportamentos nos segmentos-alvo.

É dito por muitos especialistas que o setor da água em Portugal é também um setor muito envelhecido. Como se combate o envelhecimento do setor? E como se conquista o tão desejado “sangue novo”? 

Tive já oportunidade de sublinhar que a avaliação do nível de maturidade e desempenho do setor da gestão da água deve ter em conta o facto de se tratar de uma realidade muito heterogénea, seja de um ponto de vista regional seja dos diferentes usos.

No perímetro de intervenção do Grupo Águas de Portugal, consideramos que o ciclo de investimento, das últimas três décadas, permitiu valorizar substancialmente a nossa infraestrutura. O nosso parque de infraestrutura é composto por com cerca de oito mil instalações, a que corresponde um volume de investimento na ordem dos sete mil milhões de euros.

A robustez técnica, económica e financeira do Grupo permite projetar um novo ciclo de investimentos muito expressivo, nomeadamente na reabilitação, manutenção e substituição de componentes, bem como na resiliência dos sistemas, por via do reforço das origens, das interligações e redundâncias. Também investimentos que potenciem ganhos de eficiência hídrica, energética e operacional, fazendo nomeadamente apelo à digitalização.

O novo ciclo de investimentos contempla também a produção de energia verde para alcançarmos no horizonte da década a neutralidade carbónica e a plena autossuficiência para nos por a salvo da volatilidade do mercado no acesso a um recurso fundamental para a operação. O Grupo é o principal consumidor público de energia.

Devo assinalar ainda a importância dos investimentos ao nível da qualidade e do requerido para salvaguarda total da conformidade com as exigências ambientais nacionais e europeias.

O nível de investimento registado em 2022 supera em 35% o realizado em 2020 e temos de intensificar esta dinâmica nos próximos anos.

Esta é a primeira parte da Grande Entrevista incluída na edição 98 da Ambiente Magazine

Fotos de Raquel Wise