MUBI: A bicicleta tem servido em Portugal para “maquilhar de verde” discursos políticos

No passado dia 2 de agosto, assinalou-se o segundo aniversário da publicação da Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável (ENMAC) 2020-2030. Apesar do uso da bicicleta ter registado um aumento acentuado, há ainda muito para fazer nesta área. A Ambiente Magazine foi ao encontro de Rui Igreja, presidente da MUBI (Associação para a Mobilidade Urbana em Bicicleta), que fez um ponto de situação sobre a mobilidade ciclável em Portugal.

Citando o Inquérito à Mobilidade nas Áreas Metropolitanas do Porto e de Lisboa, conduzido pelo INE (Instituto Nacional de Estatística) em 2017, o responsável indica que “dois terços das deslocações” são feitas em automóvel particular, as taxas de utilização de transporte público e de deslocações a pé diminuíram na última década e a utilização da bicicleta como modo de transporte é residual (0.4% na AMP e 0.5 na AML). Pode-se assim afirmar que a “quota modal do automóvel é ainda superior em muitas outras cidades do país”, refere o presidente da MUBI, acrescentando que “o setor da mobilidade e transportes passou, em 2019, a ser aquele com maior peso (28%) nas emissões do país”. Rui Igreja lembra que o transporte rodoviário é responsável por mais de “95% das emissões” do setor e também a “principal causa de poluição do ar nas cidades”.

Questionado sobre os desafios que esta área enfrenta no país, o presidente da MUBI refere que, ao longo das últimas décadas, as políticas públicas criaram em Portugal uma “enorme dependência da utilização do automóvel” e uma “cultura de mobilidade fortemente assente neste modo”, com enormes custos para o país: “Reverter a situação exige um amplo e firme compromisso por uma mudança de paradigma nas políticas urbanísticas e de mobilidade, priorizando as deslocações a pé e em bicicleta, o transporte público e os sistemas de mobilidade partilhada, em detrimento da utilização do automóvel individual”. O Manifesto “Cidades Vivas: 10 medidas para devolver a cidade às pessoas” é assim um exemplo do compromisso da MUBI que visa estimular e ajudar os municípios portugueses nessa transformação.

Relativamente a outros países, Rui Igreja atenta que Portugal é o “segundo país da Europa que mais usa o automóvel”, o “segundo que menos usa os transportes públicos” e o “segundo país onde menos se utiliza a bicicleta como modo de transporte”. É também o “segundo país da Europa onde os custos externos do transporte rodoviário representam maior fatia do PIB (7.2%, 16.8 mil milhões de euros por ano)”, precisa. A piorar esta situação, lamenta o responsável, está o facto do Governo português, através do Plano de Recuperação e Resiliência, ter destinado mais de 700 milhões de euros à construção de estradas e zero aos modos ativos: “Itália destinou 600 milhões de euros à construção de ciclovias e Espanha 3 mil milhões à mobilidade ativa”. Já a República da Irlanda decidiu alocar, ao longo dos próximos cinco anos, 10% do orçamento de Estado para transportes à mobilidade em bicicleta e outros 10% ao modo pedonal: “São 360 milhões de euros por ano (cerca de um milhão por dia) para os modos ativos, num país com metade da população portuguesa”.

[blockquote style=”2″]Conceito de rede ciclável continua “ausente” em quase todos os municípios portugueses[/blockquote]

Sobre infraestruturação, o presidente da MUBI refere que Portugal apresenta, a nível Europeu, dos “piores índices de sinistralidade rodoviária” dentro das localidades. E as autarquias portuguesas continuam a “construir” e a “manter vias que permitem e incitam a prática de velocidades assassinas”, alerta, constatando que “sem coragem para fazer frente à ameaça do automóvel nas cidades, continua a existir uma enorme falta de vontade política em desencorajar o uso do carro nas cidades, em reduzir velocidades motorizadas, em inverter a usurpação do espaço urbano pelo automóvel e distribuí-lo mais equitativamente e em dignificar e proteger os utilizadores mais vulneráveis”. O presidente da MUBI não tem dúvidas de que o conceito de rede ciclável continua “ausente” em quase todos os municípios portugueses: “E, uma grande parte das vias destinadas à circulação de bicicletas continua a ser construída com graves erros que comprometem a conveniência e segurança dos utilizadores de bicicleta”.

Apesar de Lisboa ter já começado a “dar passos importantes” na promoção da mobilidade em bicicleta, Rui Igreja constata que ainda está muito distante de numerosas outras cidades e capitais europeias: “Nas restantes cidades portuguesas, os avanços têm sido demasiados tímidos ou inexistentes”.

Olhando às “valias” que a ENMAC trouxe para esta área, o presidente da MUBI refere que a mesma deu origem a um “instrumento de política pública” com objetivos, metas e compromissos do Governo em desenvolver as ações necessárias para os alcançar: “A utilização da bicicleta em Portugal deverá convergir com a média do resto da Europa e, até 2030, pelo menos 7.5% das viagens no território nacional e 10% nas cidades ser feitas em bicicleta”. A estratégia nacional permite ao Governo estabelecer um “quadro claro para o desenvolvimento da utilização da bicicleta em Portugal”, incluindo a “coordenação de políticas para a bicicleta vertical e horizontalmente” através das entidades governamentais, acrescenta. No entanto, o Governo tem feito “omeletes sem ovos” no que à ENMAC diz respeito: “Numa estratégia a dez anos, completados dois anos, é extremamente preocupante que continue muito atrasada e a progredir a um ritmo extremamente lento. Estamos no perigo iminente de falhar as metas intercalares para 2025”. Por isso, alcançar as metas da ENMAC exige um “grande investimento e esforço coletivo do Estado” para uma “profunda transformação da sociedade” ao nível da mobilidade urbana: “E é isto que a MUBi tem tentado fazer ver ao Governo e partidos na Assembleia da República”.

Para Rui Igreja, os líderes políticos devem ter a “visão”, a “coragem” e a “responsabilidade” de mudar o paradigma nas políticas urbanísticas e de mobilidade, “privilegiando a qualidade de permanência e uso dos espaço público e os modos de transporte mais saudáveis e sustentáveis”, em detrimento do uso do automóvel individual: “Vemos esta mudança a acontecer em muitas cidades e países à nossa volta”. Um bom exemplo disso é Paris que vai “eliminar 70 mil lugares de estacionamento automóvel” e “tornar todas as ruas da cidade amigas da bicicleta” até 2024, destaca.

[blockquote style=”2″]Desencorajar o uso do carro nas cidades[/blockquote]

Ao nível da adesão da sociedade no uso da bicicleta ao invés do automóvel único, o presidente da MUBI constata que as questões ambientais, de saúde ou económicas e, também pela crescente popularidade (da bicicleta) na mobilidade urbana, tem originando um aumento na utilização da bicicleta como modo de transporte quotidiano. Depois, em resultado da pandemia, a procura pelo uso da bicicleta disparou em Portugal, como no resto do mundo.

Reuters

Como notas finais, Rui Igreja não tem dúvidas que a “bicicleta” tem servido em Portugal essencialmente para “maquilhar de verde” discursos políticos: “Está na altura de passar a ter condições vantajosas relativamente ao transporte motorizado individual nos diversos instrumentos de planeamento, financeiros, legislativos e fiscais, e ser valorizada pelos seus amplos benefícios ambientais, sociais, económicos e de saúde”.

A MUBi defende que pelo menos 10% do capital investido no setor dos transportes em Portugal seja alocado à mobilidade em bicicleta e outros 10% ao modo pedonal: “É fundamental desencorajar o uso do carro nas cidades, reduzir as velocidades motorizadas e transformar o espaço público para o tornar mais seguro e inclusivo”. E ao nível dos investimentos em transportes públicos, esses devem ser “acompanhados pela promoção da complementaridade com os modos ativos”, melhorando as “acessibilidades pedonais e em bicicleta às estações e interfaces de transportes públicos”, reforça.09

[blockquote style=”2″]Como perspetivam os próximos 30 anos?[/blockquote]

A presente década será marcada por uma profunda redefinição da mobilidade nas cidades portuguesas. As prioridades do século XX ou das duas primeiras décadas deste século já não se aplicam ao Portugal de hoje, e as pessoas exigem agora, mais do que nunca, lugares mais verdes, seguros e saudáveis para viver.

Os centros urbanos são responsáveis por 70% das emissões de gases com efeito de estufa e o transporte rodoviário é a principal causa da poluição do ar nas cidades. Os compromissos e metas climáticas colocam, por isso, uma enorme exigência às áreas urbanas.

Reduzir as emissões do sector dos transportes requer uma gama abrangente de políticas públicas que conduzam a uma significativa redução do número de automóveis em circulação e da sua utilização, principalmente nas cidades.