No rumo à neutralidade carbónica, qual o papel da indústria nacional de cimento?

Manter a indústria nacional de cimento viável, competitiva e promover a sua contribuição para uma sociedade cada vez mais sustentável e justa é a grande prioridade da ATIC (Associação Técnica da Indústria de Cimento). Para cumprir tal objetivo, a organização representativa do setor está centrada no combate às alterações climáticas, na promoção da energia renovável, no uso sustentável de recursos e na economia de baixo carbono. Prova disso é o “Roteiro da Indústria Cimenteira para a Neutralidade Carbónica”, lançado recentemente. De forma a obter uma visão alargada sobre os desafios e oportunidades deste setor no rumo à neutralidade carbónica, a Ambiente Magazine quis saber junto de Gonçalo Salazar Leite, presidente da ATIC, e de Luís Fernandes, presidente do Conselho Executivo da ATIC e CEO da CIMPOR, qual o caminho que esta indústria tem traçado.

Para Gonçalo Salazar Leite, o roteiro reflete publicamente a ambição da indústria de cimento nacional de “atingir a neutralidade carbónica até 2050, com um saldo líquido de zero emissões ao longo da cadeia de valor do cimento e do betão”. Para tal, acrescenta, o setor define “metas e medidas concretas” que lhe permitam “alcançar este objetivo”, evidenciando o “compromisso da indústria em ser parte da solução”. O Roteiro estabelece ainda a meta intermédia de 2030 em que a indústria aspira “estar em linha” com o cenário de dois graus previsto no Acordo de Paris, reduzindo as “emissões de CO2 em 48% face a 1990” ao longo de toda a cadeia de valor. Trata-se de um compromisso que foi assumido pela União Europeia (UE) no Pacto Ecológico Europeu, pelo Governo Português no Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 e também pela indústria cimenteira europeia no seu todo: “Um roteiro à escala europeia com a abordagem 5C que foi apresentada em 4 de junho de 2020 em Bruxelas para materializar a estratégia e o compromisso da indústria cimenteira europeia”, lembra Salazar Leite.

Das metas às quais se comprometeram, Luís Fernandes destaca que a indústria cimenteira nacional e europeia está na “vanguarda tecnológica” a nível europeu e global, pretendendo, assim, manter a “posição de liderança e de competitividade” enquanto contribui para um futuro mais sustentável. “Sabemos as dificuldades de um caminho que ainda é longo”, diz, destacando que, “entre outros aspetos, é preciso garantir a criação de um Level playing field face a outros setores e outros Estados-membros da UE”.  A este propósito, o presidente do Conselho Executivo da ATIC considera “fundamental o enquadramento do regime de Auxílios de Estado relativo ao setor”, inclusivamente tendo em conta a aplicação do Plano de Recuperação e Resiliência,  que “considere a existência de mecanismos de compensação das emissões de CO2 na comparação com outras geografias da UE”, além de “um instrumento abrangente que considere as diversas fontes de energia e permita a sua disponibilidade a um preço competitivo, tal como o desenvolvimento de redes de energia de elevado desempenho”.

Neste momento, a ATIC está a estudar a “tecnologia de captura de carbono ao nível de instalações-piloto”, prevendo-se que, “até meados da corrente década, possa vir a ser provada com sucesso a uma escala industrial antes de estar disponível a uma escala comercial”, adianta. No entanto, os “elevados custos” associados à implementação e à operação destas futuras tecnologias e de construção da infraestrutura adequada de transporte de CO2 requerem, segundo Luís Fernandes, um “quadro de financiamento bastante expressivo e integrado”. Num esforço conjunto, “os fornecedores de equipamentos terão também um papel importante em fazer evoluir as curvas de aprendizagem destas tecnologias”, tornando-as viáveis: “Só assim conseguiremos atingir a neutralidade carbónica ao longo da cadeia de valor do cimento e do betão até 2050″.

De acordo com presidente do Conselho Executivo da ATIC, o setor tem atualmente um “potencial limitado de redução de emissões de CO2 dado que, daquelas emissões, as relacionadas com o processo associado à produção de clínquer têm uma margem escassa de diminuição”, quando considerados os meios convencionais. E, apesar do recurso a “novas matérias-primas para a produção de clínquer e cimento” (com menores emissões de CO2), a par de “inovações ao nível da produção de betão e da construção”, Luís Fernandes constata que “os esforços para descarbonizar totalmente o setor dependerão fortemente da captura de carbono na fábrica de cimento e da sua subsequente utilização e armazenamento”.

[blockquote style=”2″]Setor da construção como um dos pontos chave principais do Plano de Ação da Economia Circular[/blockquote]

Relativamente ao papel do setor da construção, Gonçalo Salazar Leite lembra que o Pacto Ecológico Europeu reconhece “explicitamente” a indústria do cimento como uma das “indústrias essenciais” para a economia da UE, uma vez que fornece “várias cadeias de valor decisivas”. Aliás, identifica o setor da construção como um dos “pontos-chave principais do Plano de Ação da Economia Circular”, promete uma “nova iniciativa de renovação”, enfatiza a “importância de políticas de produtos sustentáveis” e “anuncia a estratégia da biodiversidade”

E porque não é possível falar-se em construção sem se falar em betão, o presidente da ATIC sublinha que, até à data, este material é insubstituível: “Precisamos de betão para construção de casas, edifícios, hospitais, escolas, para termos o conforto térmico e a segurança que só este material versátil e resiliente proporciona. Precisamos de betão para construir barragens, tuneis, saneamento básico, escoamento de águas, cais marítimos, e estruturas de adaptação aos efeitos da alteração climática. Vamos então torná-lo mais sustentável”, defende.

O que parece ser uma verdadeira preocupação é o consumo energético dos edifícios: “Se incluirmos as emissões diretas e indiretas da produção de eletricidade, o edificado é responsável por aproximadamente 40% do consumo de energia e 35% das emissões de gases com efeitos de estufa na UE. Reduzir drasticamente as emissões de edifícios existentes e novos é fundamental para qualquer estratégia de mitigação de emissões”. Neste sentido, “o que se constrói, como se constrói, quais as opções de design escolhidas, quais materiais utilizados e o que se reabilita e reutiliza tem um grande impacto em termos de emissões de CO2”, sustenta Gonçalo Salazar.

Desta forma, para se alcançarem “maiores reduções de emissões de CO2, é indispensável avaliar todo o ciclo de vida dos edifícios”, desde a “fase de projeto” até à “construção e à demolição”. Segundo Gonçalo Salazar, o betão tem um “enorme potencial” de reabsorção das emissões de CO2: “Até 25% das emissões resultantes da produção de clínquer podem ser reabsorvidas ao longo da vida útil das estruturas em betão: o betão absorve CO2 de uma forma natural ao longo dos anos”. E com a “demolição e britagem”, esse potencial de absorção de CO2 aumenta exponencialmente: “O betão, quase 100% reciclável, é assim um poderoso sumidouro de CO2”. Tal como expectável, é fundamental “trabalho e investimento significativos ao longo de toda a cadeia de valor da indústria ou da fileira da construção” para que se possa “promover a inovação em novos produtos, processos e tecnologias”, acrescenta.

[blockquote style=”2″]Reciclagem do betão deve ser promovida por meio de uma regulamentação mais forte e através de códigos de construção[/blockquote]

O percurso que a indústria cimenteira faz em prol da sustentabilidade já não é de agora: “Já está há bastante tempo numa efetiva transição em direção a um modelo mais circular, a uma economia assente na utilização mais sustentável dos recursos”, afirma Luís Fernandes, acrescentando que “é visível a forma como cimento e betão podem aplicar os princípios da economia circular ao longo do ciclo de vida dos seus produtos”.

Para o responsável, é fundamental uma “abordagem de Economia Circular” que leve em consideração vários aspetos como a “redução de emissões na produção de cimento e betão”, a “economia proporcionada pelo betão ao longo  da sua vida útil”, a “redução da procura através da promoção de design”, a “eficiência de materiais e construção e padrões mais sofisticados”, a “reutilização de estruturas inteiras de betão”, projetos que “prevejam a desmontagem e reutilização dos elementos de construção, que permitam a redução de CO2 no final da vida útil das soluções construtivas” e, ainda, a “reciclagem do betão e o aumento do efeito de (re)carbonatação do mesmo”. Uma contribuição relevante para economia circular reside, essencialmente, na “possibilidade de reciclagem dos resíduos da construção e demolição no final do ciclo de vida da construção”. Recorrendo aos dados da Comissão Europeia, Luís Fernandes atenta que apenas “um terço dos resíduos de construção e demolição” são reciclados. Por isso, é fundamental que os “legisladores simplifiquem o quadro legal para incentivar os agentes económicos” a seguirem esse caminho: “O setor colaborou num projeto que visa identificar e promover as melhores práticas para o uso nesta indústria de subprodutos e matérias-primas secundárias resultantes da construção e da demolição”, afirma.

Luís Fernandes defende que “a reciclagem do betão deve ser promovida por meio de uma regulamentação mais forte e através de códigos de construção” que “incentivem a posterior separação dos materiais” através de uma “demolição e desconstrução cuidadosa, reciclagem avançada e outros desenvolvimentos tecnológicos”. Isso exigirá, para a produção de cimento e betão, “a adoção de abordagens” do tipo “do berço ao berço”, que evitem o “envio do produto para aterro e maximizem a absorção de CO2 emitido durante a fabricação”, destaca.

[blockquote style=”2″]Nenhum setor conseguirá alcançar sozinho a neutralidade em carbono[/blockquote]

O governo português delineou um caminho no Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 (RNC2050), no Plano Nacional de Energia-Clima 2021-2030 (PNEC2030) e na Estratégia Nacional do Hidrogénio (EN-H2). E no rumo à neutralidade carbónica, ambos os dirigentes defendem que o setor precisa de uma “ação política nacional” e da “UE em algumas áreas-chave”.

Na visão de Gonçalo Salazar Leite, o país precisa de ir mais longe: “Deverá assumir a necessidade de investir na investigação e desenvolvimento de tecnologias de captura e reutilização do carbono”, além de que “precisamos de equacionar uma solução para estabilizar a rede elétrica e lidar com os picos de geração de energia renovável, eventualmente para produzir hidrogénio verde”, afirma, acrescentando a necessidade de se “canalizar recursos para as indústrias para esse efeito”. Esta foi questão abordada na Estratégia Nacional do Hidrogénio: “Mas há que, efetivamente, pôr em prática todas as medidas necessárias para o conseguir”, sustenta.

Por seu turno, Luís Fernandes chama a atenção paras fundos do Plano de Recuperação e Resiliência, defendendo a necessidade de se “avaliar os projetos, reconhecer a eficácia dos mesmos e disponibilizar os fundos necessários”.

Questionados se Portugal vai mesmo conseguir ser neutro em 2050, os responsáveis são perentórios: “Nenhum setor conseguirá alcançar sozinho a neutralidade em carbono”. Trata-se de um “desígnio da sociedade”, sendo fundamental que as “indústrias, decisores políticos, academia, colaboradores e seus representantes e os consumidores trabalhem em conjunto no sentido de definir novos caminhos e novos padrões de comportamento e de consumo”, afirma.

Uma vez identificados alguns dos “desafios”, os dirigentes da ATIC consideram fundamental um “conjunto de políticas públicas de suporte” e um “quadro regulamentar” que permita a “investigação e desenvolvimento de novas tecnologias disruptivas de produção, realizar investimentos avultados contra retornos razoáveis, assegurar o acesso a matérias-primas, energia renovável abundante a custo competitivo e a utilização de combustíveis alternativos”, precisam.

[blockquote style=”1″]Como perspetivam o futuro?[/blockquote]

É certo que indústria cimenteira portuguesa enfrenta “duros desafios” a nível económico, social e político, dada a “crescente exigência decorrente das preocupações com as alterações climáticas”. No entanto, há uma certeza:

Esta será, sem dúvida, uma indústria com menores níveis de emissões de CO2, menor utilização de combustíveis fósseis e com produtos mais sustentáveis. Para isso, contamos com investigação aplicada e focalizada, em estreita cooperação com outras empresas, centros de investigação e Universidades em áreas de I&D como captura e utilização de CO2, eficiência energética industrial e novos materiais cimentícios para soluções construtivas cada vez mais sustentáveis. Só assim manteremos também a nossa competitividade.