Opinião: Cidadãos: (ir)responsáveis na gestão dos resíduos? (Parte III/IV)

Por Catarina Pinto Xavier, advogada SLCM // Serra Lopes, Cortes Martins & Associados – Sociedade de Advogados, SP, RL.

Como é apanágio de qualquer regime regulatório de Direito Público, também no regime da gestão de resíduos os regulados são os operadores económicos. Aqueles que, quer sejam pessoas singulares ou coletivas, desenvolvem uma atividade económica. É a eles que se destinam os deveres, as obrigatoriedades de licenciamento e de prestação de informações, são eles que são objeto de fiscalização e estão sujeitos à aplicação de coimas (milhentas!… que por resultarem da aplicação das superpoderosas contraordenações ambientais, podem chegar a modestos cinco milhões de euros por infração).

Igualmente destinatário do regime regulatório é o Estado, representado por diversas entidades públicas, a quem são conferidas atribuições em função do seu substrato político ou técnico. Às autoridades administrativas são atribuídos poderes de apreciação e de decisão, também alguns deveres, e graças à suprema lentidão dos tribunais administrativos portugueses, estão praticamente isentas de qualquer tipo de fiscalização, que não a própria da hierarquia administrativa. No sector dos resíduos têm competências o Ministério do Ambiente, o Ministério da Economia, a APA, as CCDR, a ERSAR, a DGAE, a IGAMAOT, os Municípios… e até seres originais e híbridos, como a CAGER ou o Presidente da CAGER, que agem como se fossem, mas afinal não são (ou não se sabe se são) autoridades administrativas (um mistério por desvendar!).

[blockquote style=”1″]Mas, se em bom rigor, todos nós, na nossa vivência diária, produzimos resíduos, resulta da lei algum dever que se nos aplique, como cidadãos?[/blockquote]

Dois dos fundamentos para as políticas de gestão de resíduos são proteger a saúde humana e preservar e melhorar a qualidade do ambiente, ambos corolários do objetivo maior de promoção da qualidade de vida dos cidadãos.

No Regime Geral da Gestão de Resíduos (RGGR) ainda em vigor, estabelece-se o princípio da responsabilidade do cidadão, no sentido de que os cidadãos contribuem para a prossecução dos princípios e objetivos das políticas de gestão de resíduos, adotando comportamentos de carácter preventivo em matéria de produção de resíduos, bem como práticas que facilitem a respetiva reutilização e valorização. E nada mais.

No UNILEX, estabelece-se que os cidadãos devem contribuir ativamente para o bom funcionamento dos sistemas de gestão de fluxos específicos de resíduos, nomeadamente adotando comportamentos de carácter preventivo em matéria de produção de resíduos, práticas que facilitem a respetiva reutilização e valorização e procedendo ao correto encaminhamento dos resíduos que detenham, através da sua entrega ou deposição nas redes de recolha seletiva existentes. E nada mais.

Em qualquer dos casos, sem qualquer consequência jurídica. Válidos como princípios morais (ou, em termos jurídicos, como “obrigações naturais”).

O novo RGGR, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, embora deixe de consagrar aquele princípio da responsabilidade do cidadão (inócuo, na verdade), vem, pela primeira vez, responsabilizar os cidadãos, na sua qualidade de produtores de resíduos e de utilizadores finais do serviço de gestão de resíduos urbanos.

Passa-se a prever que os cidadãos são responsáveis por separar e depositar os resíduos urbanos produzidos nas habitações nos pontos ou centros de recolha disponibilizados pela entidade que presta o serviço de recolha e tratamento de resíduos ou em locais autorizados para o efeito. A consequência do incumprimento desta obrigação pode ser a aplicação de coimas, caso os Municípios entendam estipular em regulamento municipal que tal violação constitui uma contraordenação.

Passa também a prever-se expressamente que os cidadãos são responsáveis pelo pagamento da tarifa cobrada pelos sistemas municipais ou multimunicipais de gestão de resíduos. É certo que os cidadãos já pagam, incorporado na fatura da água, um valor a título de taxa de gestão de resíduos. A diferença está em que, finalmente, os serviços de gestão de resíduos, tal como acontece hoje com os serviços de abastecimento de água e saneamento, passarão a ter uma tarifa específica associada, que cubra os custos da prestação do serviço. A partir de 1 de julho de 2026, o valor cobrado pela gestão de resíduos deve deixar de ser indexado ao consumo da água.

A lei estabelece os objetivos: a tarifa de resíduos deve incentivar (i) a redução da quantidade dos resíduos urbanos e a nocividade dos mesmos, (ii) a separação na origem, (iii) o incremento dos resíduos recolhidos seletivamente. E também alguns critérios: a tarifa deve ser aplicada sobre a quantidade de resíduos recolhidos, medida em unidades de peso ou estimada pelo volume de contentorização. Mas deixa a definição e implementação das tarifas aos Municípios (sob a orientação da ERSAR).

Em suma: em termos morais e sociais, os cidadãos são e sempre foram responsáveis no âmbito do sistema de gestão de resíduos. Em termos jurídicos, sê-lo-ão quando e como os Municípios quiserem.

A política de gestão de resíduos para os cidadãos passa agora a integrar, assumidamente, a agenda política autárquica.

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