Opinião: Da lei à prática na economia circular
Por Ana Matos Almeida, Presidente Circular Economy Portugal
A Europa está a legislar cada vez mais para travar os descartáveis e a obsolescência programada. Mas a mudança não pode ser só legal: tem de ser prática, visível, quotidiana. Reutilizar e reparar são soluções estratégicas para reduzir emissões, cortar custos e proteger a saúde pública. Quando devolvemos um copo para ser reutilizado em vez de o deitar fora, ou quando consertamos um eletrodoméstico em vez de comprar outro, estamos a escolher um futuro mais justo e mais resiliente.
Um estudo da Ellen MacArthur Foundation mostra que as embalagens retornáveis, quando desenhadas de forma colaborativa e operacionalizadas em grande escala, podem reduzir até 70% as emissões de gases com efeito de estufa e até 75% do consumo de materiais em comparação com alternativas descartáveis. Os ganhos ambientais são claros, mas também o potencial económico: sistemas bem desenhados conseguem competir com o uso único e, ao mesmo tempo, criar emprego local em recolha, triagem, lavagem e logística reversa.
Até 2028, cafés e restaurantes da União Europeia com mais de dez funcionários terão de oferecer copos reutilizáveis com sistemas de depósito-devolução como alternativa aos descartáveis. O Wall Street Journal relatou recentemente que Aarhus, na Dinamarca, implementou desde 2023 copos reutilizáveis com máquinas de devolução automática, que conseguiram devolver 87% dos copos emprestados. Quando o sistema é conveniente, com incentivos claros e infraestruturas práticas, os cidadãos aderem. É este tipo de aprendizagem que precisamos de multiplicar em Portugal.
Portugal tem metas concretas: até 2026, reduzir em 80% o consumo de copos e embalagens de uso único em comparação a 2022. Os restaurantes e bares já devem disponibilizar bebidas em embalagens reutilizáveis e os estabelecimentos de take-away e entregas são obrigados a disponibilizar embalagens reutilizáveis, com depósito reembolsável. Embora ainda não seja do conhecimento geral, o consumidor também tem o direito de levar o seu próprio recipiente para take-away.
Tudo isto representa progresso legislativo. Mas não basta haver leis. É preciso garantir implementação, fiscalização e, sobretudo, comunicação. Muitos desconhecem que já hoje podem exigir, legalmente, levar o café ou a refeição numa caixa ou copo reutilizável que trouxeram de casa . É urgente tornar estes direitos visíveis, comunicá-los de forma simples e acessível, para que sejam exercidos no dia a dia.
Lisboa mostrou que é possível passar da norma à prática. No piloto de copos reutilizáveis lançado pela TOMRA, Câmara Municipal e AHRESP, recolheram-se 14.000 copos em apenas 54 dias, com uma taxa de devolução superior a 90%. É a prova de que quando a infraestrutura existe e é conveniente, os cidadãos aderem. Este projecto enfrenta atrasos no alargamento mas é crucial para o cumprimento da lei que de momento não está assegurado.
A reparação deve ganhar a mesma centralidade: o Repair Café Lisboa, iniciativa mensal organizada por voluntários e que esteve na origem da criação da Circular Economy Portugal, já reparou cerca de mil objetos desde 2016 e sensibilizou milhares de pessoas para a importância de prolongar a vida útil dos bens. As medidas europeias “direito a reparar” serão transpostas para a legislação nacional até julho de 2026, que exige peças sobresselentes a preços justos e aposta na formação de novos profissionais, um setor que pode criar 700 mil empregos até 2030. Em Portugal, empresas testam ateliers de reparação dentro das próprias lojas, reparando artigos dentro e fora da garantia, como é o caso do Leroy Merlin. Estes serviços geram rendimento adicional — menos devoluções, mais uma venda, e a fidelização do cliente dentro do ecossistema da marca.
A reutilização e a reparação não são apenas soluções ambientais: são instrumentos de cidadania, de resiliência comunitária e de inovação económica. Precisamos de legislação, mas também de implementação eficaz, fiscalização consequente e comunicação clara dos direitos dos consumidores. Só assim transformaremos a exceção em regra. Não basta escrever a lei: é preciso que ela ganhe vida na prática quotidiana de cada um de nós.