Por: André Zibaia da Conceição, Catarina Franco Madeira e Guilherme Santos Silva, Advogados na Franco Zibaia
Foi aprovado pelo governo no passado dia 26 de fevereiro um projeto de decreto-lei cujo objetivo declarado é o de tornar “tão fácil carregar um veículo elétrico em Portugal como é hoje abastecer numa bomba de gasolina”.
O projeto, que está em consulta pública até ao dia 29 de março, vem fazer refletir na ordem jurídica nacional o regime que já resulta do regulamento europeu conhecido pela sigla em inglês AFIR (Alternative Fuel Infrastructure Regulation), publicado em setembro de 2023 e em vigor já há cerca de um ano.
Nasce da necessidade de revisão geral de um modelo que está em vigor desde 2010 e que, tendo sido instrumental no lançamento de um mercado da mobilidade elétrica então inexistente e que urgia fomentar (se necessário, a nível centralizado e estatal), se revela agora desajustado de uma realidade e de um contexto europeu e mundial que, ao longo dos últimos 15 anos, se transformaram profundamente.
Surge ainda em resposta a dois impulsos específicos: desde logo, o impulso criado pelo próprio AFIR, que traz não só metas a cumprir quanto (entre outros) ao número de postos e à respetiva potência, bem como a objetivos de descarbonização e transição energética, como ainda exige o cumprimento de novos requisitos, como a necessidade de o abastecimento poder ser pago com cartões bancários em todos os postos (funcionalidade que apenas alguns postos nacionais disponibilizam), ou a importância dada à figura do Operador de Postos de Carregamento (“OPC”), determinando que é este quem presta o serviço de carregamento.
Por outro lado, dá resposta a claras recomendações da Autoridade da Concorrência que, muito recentemente, veio defender a simplificação global do modelo, uma maior concorrência, eficiência e transparência do sistema, e uma menor centralização na figura da entidade gestora, uma originalidade do sistema nacional.
Está ainda alinhado com quatro resoluções da Assembleia da República (do PSD, PS, PAN e CDS), globalmente defendendo esta revisão.
O projeto agora aprovado defende a liberalização do mercado de mobilidade elétrica e assegura que qualquer utilizador – sublinhe-se: qualquer utilizador, português ou estrangeiro – tenha acesso a qualquer ponto de carregamento de acesso público. O condutor passa a poder pagar com o seu cartão multibanco no ponto de carregamento (o chamado carregamento ad hoc) sem que tenha, obrigatoriamente de celebrar um contrato prévio com outra entidade, como, na prática, obriga o modelo atual.
Para além de facilitar o acesso dos consumidores aos pontos de carregamento, o projeto também simplifica as relações entre os agentes do mercado de mobilidade elétrica.
No modelo atual – original face a todos os outros modelos europeus – um utilizador (i) celebra um contrato com um comercializador de energia para a mobilidade elétrica (CEME), que, por sua vez, (ii) adquiriu a energia a um comercializador do Sistema Elétrico Nacional (SEN), sendo (iii) a energia abastecida por um operador de posto de carregamento (OPC) e (iv) os dados necessários a esta complexa operação mediados pela entidade gestora e, claro, (v) objeto de impostos e taxas.
Temos, assim, para cada carregamento, cinco entidades a intervir no processo e, claro, a serem remuneradas por essa intervenção, ora com – legítimos – lucros, ora com taxas, tarifas e comissões cujo destino é – não só, mas também – o de alimentar a desnecessária complexidade do sistema.
O novo modelo vem trazer uma maior simplificação desta equação, dela eliminando intervenientes que o legislador entende não trazerem valor acrescentado, e assemelhando-a ao modelo de abastecimento de automóveis que todos conhecemos: o utilizador adquire energia a um OPC (no modelo tradicional, a bomba), que adquiriu a energia (o gasóleo ou a gasolina) a um comercializador de eletricidade (a refinaria), que depois são tributados pelo Estado. Adicionalmente, estabelece-se a possibilidade de os OPC recorrerem à produção de energia renovável em regime de autoconsumo ou utilizarem energia elétrica armazenada localmente.
Os beneficiários deste novo regime são, à cabeça, os utilizadores, com a redução dos intervenientes e custos associados no sistema, e passando a ter acesso a serviços mais cómodos e convenientes (abastecer e pagar, sem mais).
Mas não só: o mercado dos operadores terá, a partir de agora, muito mais motivação para investir em novos postos, aumentando a cobertura nacional da rede (abaixo da média da UE), com melhores, mais inovadoras e mais rápidas tecnologias de carregamento e, em suma, um melhor serviço prestado aos condutores.
Como se não bastasse, o modelo português em vigor tem ainda uma desvantagem competitiva de base: é que é diferente de todos os outros modelos existentes na União Europeia e é, na sua essência, incompatível com o modelo preconizado pelo AFIR.
Implica, por exemplo, que um condutor de um carro elétrico que se desloque de Vigo a Viana do Castelo ou que queira ir conhecer o Alentejo, vindo de Sevilha, terá grandes dificuldades em carregar o seu veículo no nosso país.
Implica ainda que um OPC que opere no mercado europeu tenha muito pouca vontade de investir em Portugal, onde terá de aprender tudo de novo e de se adaptar a um modelo diferente de todos os outros.
É que só em Portugal se exige toda esta complexidade para, no fundo, ligar um carro a uma tomada e pagar por isso. Faz lembrar a conhecida história da mãe que, vendo o filho soldado na parada a desfilar de forma diferente da dos outros militares, exclama: “Vejam bem! Só o meu filho é que sabe marchar como deve ser!”
Espera-se que esta reforma do modelo venha, assim, contribuir para uma maior abertura, liberalização, simplificação, eficiência e transparência do setor da mobilidade elétrica português, aproximando-nos mais do mercado europeu.