#Opinião: Os desafios e oportunidades na Gestão de Resíduos de Navios

O lixo marinho é um dos problemas mais graves para a saúde dos oceanos, ameaçando, com grande nível de perigosidade, a biodiversidade do meio marinho e a sustentabilidade económica das atividades que dependem do mar.

A maior parte do lixo marinho provém de atividades localizadas em terra, chegando aos oceanos através dos rios, mas não se pode ignorar o lixo proveniente das frotas de pesca, do transporte marítimo e das embarcações marítimo-turísticas. Estes setores também originam lixo marinho, seja por descargas de resíduos diretamente para o mar, seja por perda e abandono de artes de pesca e outros.

Os navios representam cerca de 20% das descargas globais no mar e a Comissão Europeia estima que, apesar das melhorias para controlar as descargas ilegais, entre 60 e 300 mil toneladas de lixo e mais de 31 mil m3 de resíduos de óleo e 136 mil m3 de esgotos provenientes da marinha mercante, chegam anualmente aos mares da União Europeia.

Panorama Mundial

Cláudia Lauro

De acordo com as Nações Unidas (UNCTAD, 2021a), em janeiro de 2021, as cinco principais economias proprietárias de navios (com mais de 100 GT) juntas representavam 52% da tonelagem da frota mundial. Os armadores gregos detêm de 18% do mercado, seguida pela China (12%), Japão (11%), Singapura (7%) e Hong Kong (5%). Metade da tonelagem mundial pertencia a empresas asiáticas, 40% era detida por proprietários da Europa, 6% por proprietários Norte Americanos e pouco mais de 2 % pertencia a África, América Latina e Caribe, e Oceânia. Acresce, que 16% da frota mundial têm registo de propriedade no Panamá, 14% na Libéria, 12,8% nas Ilhas Marshall e 9,6% na China. A nível mundial, apenas 27,4% dos armadores tem o navio registado na bandeira de onde é originário.

Entre 2020 e 2021, a frota mundial cresceu mais de 63 milhões de arqueação bruta e, independentemente da origem do seu armador.

Na década de 1970 ocorreram em média cerca de 24,5 grandes derramamentos de óleo por ano, e fruto das medidas introduzidas ao longo dos anos, na década de 2010, o número médio de grandes derramamentos de óleo diminuiu para 1,7 derramamentos de óleo por ano.

Figura 1 – Número global de derramamentos de óleo de navios-tanque, 1970 a 2021 (Fonte: ITOPF,2021)

No entanto, ainda na passada década de 2010, se verificaram cerca de 63 derramamentos de 7 toneladas ou mais, resultando em 164 mil toneladas de petróleo perdido; 91% desse valor foi derramado em apenas 10 incidentes sendo que um único incidente foi responsável por cerca de 70% da quantidade de óleo derramado. O volume total de óleo perdido no meio ambiente por derramamentos de petroleiros em 2021 foi de aproximadamente 10.000 toneladas, devido a um único incidente registado.

A maioria dos grandes derramamentos de óleo (superiores a 7 toneladas) registrados entre 1970 e 2021 foram causados por colisões e encalhes dos navios, sendo desconhecidas as causas dos pequenos derramamentos na maioria dos casos.

A maioria dos derramamentos de petróleo na Europa, representando cerca de 94% (848 toneladas) do crude perdido ocorreu antes de 2000.

Figura 2 – 20 maiores derramamentos de petróleo, 1970 a 2021 (Fonte: ITOPF,2021)

Ana Rita Freitas

O único incidente registado neste milénio foi o caso do navio Prestige que em 2002, na Galiza, derramou cerca de 63mil toneladas de crude.

A monitorização realizada pela Agência Europeia do Ambiente revela que o grosso da poluição que chega às praias europeias, deriva sobretudo de resíduos sólidos, nomeadamente plásticos (onde estão incluídas as redes de pesca), beatas de cigarro, cotonetes e embalagens. Sobre as cargas perdidas, registe-se o incidente que ocorreu este ano com um navio que afundou com carros de luxo a bordo ao largo dos Açores.

Regulamentação Internacional e Nacional

Em 1973 foi adotada a Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios (MARPOL), em resposta a uma série de acidentes ambientais com navios-tanque.

A Convenção MARPOL foi adotada pela IMO (Internacional Maritime Organization) a 2 de novembro de 1973. Portugal é membro da IMO, desde 1976, sendo esta organização das Nações Unidades constituída por 175 Estados Membros e 3 membros Associados. Esta convenção exige ainda às Partes contratantes que assegurem a existência de meios de receção de resíduos adequados nos portos.

A MARPOL prevê proibições gerais das descargas de navios no mar, mas também regula as condições em que certos tipos de resíduos podem ser descarregados no meio marinho.

Existem diferentes tipos de resíduos que podem ser gerados a bordo de um navio, incluindo resíduos de carga, lixo (por exemplo, resíduos alimentares, plásticos, resíduos domésticos), resíduos oleosos, esgotos ou substâncias que empobrecem a camada de ozono.

Os resíduos que não possam ser reutilizados u reciclados a bordo ou legalmente descarregados no mar ao abrigo das regras da MARPOL devem ser entregues nas instalações portuárias de receção de resíduos, disponíveis nos portos.

As regras da MARPOL têm vindo a adaptar-se e a tornar-se mais restritivas para responder à necessidade de proteger os mares e oceanos da poluição causada pelos navios e/ou pelas cargas transportadas em situação corrente ou de acidente.

O quadro abaixo identifica os anexos MARPOL atualmente em vigor de acordo a respetiva tipologia de resíduos e os principais impactos decorrentes das alterações legais introduzidas em cada um deles.

Em 2000, foi publicada uma Diretiva 2000/59/CE, designada por Port Reception Facilities (PRF), relativa aos meios portuários de receção de resíduos gerados em navios e de resíduos de carga que transpôs para o direito da União a obrigatoriedade de cumprir com requisitos previstos na Convenção MARPOL relativamente à entrega de resíduos em meios portuários.

A ultima atualização desta diretiva ocorreu em 2019, com a publicação da DIRETIVA (UE) 2019/883, instituindo-se a possibilidade de os Estados-Membros e os portos definirem um sistema de taxas para cobrir os custos de planeamento, recolha e eliminação dos resíduos dos navios.

Tendo em conta o princípio do “poluidor-pagador”, desencoraja os navios a descarregar resíduos no mar, e dá abertura a que os portos possam oferecer taxas reduzidas para navios com boa gestão de resíduos, produzindo menos resíduos.

Nesse sentido, o setor portuário europeu desenvolveu um guia verde sobre gestão de resíduos portuários, e taxas portuárias diferenciadas que recompensam navios mais ecológicos. Esta realidade é uma prática comum em cerca de metade dos portos da UE.

Portugal, também incorporou estes princípios transpondo esta diretiva para o direito nacional, tendo em vista uma maior proteção do meio marinho, a qual obriga as entidades gestoras dos portos a elaborarem um Plano de Receção e Gestão de Resíduos no qual se identificam os meios portuários disponíveis para a receção dos resíduos gerados a bordo, bem como os procedimentos necessários para a sua recolha e encaminhamento para destino final.

No nosso país, a transposição da Diretiva para o direito interno foi mais longe no combate ao lixo marinho, alargando às entidades gestoras dos portos a obrigatoriedade de manterem limpas de lixo as suas bacias portuárias e obrigadas a recolher e encaminhar para destino final o poliestireno expandido descartável associado à atividade piscatória.

Como lidar com o crescimento do sector, sabendo que vários estudos colocam em evidencia uma correlação entre o crescimento económico do sector do mar e o aumento da poluição?

A regulação a nível mundial e mais restritiva no contexto europeu tem sido fundamental para diminuição dos incidentes críticos de poluição, nomeadamente os derramamentos de petróleo. Mas o volume de resíduos terá tendência para aumentar por força do aumento do desenvolvimento económico do sector e as descargas para o mar, legais ou ilegais, são difíceis de controlar pelas autoridades, que para dissuadir este comportamento têm vindo a criar mecanismos de regulação que abordam de forma combinada o controlo do transporte de resíduos a bordo de navios, evitando que efetuem descargas de resíduos no mar e ao nível das instalações portuárias garantindo que reúnem as condições para a receção dos mesmos.

É certo que o tipo e quantidade dos resíduos produzidos a bordo de um navio está diretamente relacionado não só com o tipo de embarcação, tamanho, velocidade, duração da viagem, mas está igualmente relacionado quer com o tipo de combustível, quer com as práticas de gestão de resíduos existentes a bordo do navio.

Estão igualmente em estudo as praticas just in time, a promoção de meios de navegação que permitam a gestão da navegação de modo a chegar a porto no momento exato de descarga, diminuído e otimizando os consumos de energia e outros recursos.

Anabela Delgado

Quanto às praticas de tratamento a bordo, é sabido que nem todos os tipos de resíduos podem ser tratados adequada ou completamente a bordo, e nem todos os métodos são adequados para todo o tipo de resíduos. A prática operacional de segregação de resíduos a bordo constitui-se, contudo, sempre como uma boa prática para uma recolha eficiente aquando da chegada a porto e posterior tratamento, promovendo a reciclagem e reutilização ou recuperação de materiais, ou, quando necessário, proceder à sua eliminação.

Esta prática contribui, assim, para os objetivos de economia circular do Green Deal Europeu. A formação das tripulações e do pessoal que em porto lida com a gestão dos resíduos constitui igualmente um papel importantíssimo para alcançar os objetivos definidos no âmbito da economia circular definidos no Green Deal Europeu.

Embora a legislação da UE já preveja a troca de informações sobre as quantidades de resíduos produzidos e eliminados dos navios em formato eletrónico, a sua efetiva implementação constitui um desafio para o futuro proporcionando indicadores que permitirão quantificar e caracterizar de forma mais aprofundada esta realidade.

Mas muito há a ser feito, ao nível da investigação e desenvolvimento e inovação da construção naval, das cargas contentorizadas e da informação disponibilizada.

A construção de navios com soluções “mais limpas” não tem só enfoque nos combustíveis que estes consomem, mas também na capacidade de reaproveitamento dos materiais de construção aquando do seu abate e desmantelamento.

O mesmo se passa com as cargas contentorizadas ou granel, são necessárias embalagens mais ecológicas com menos teor de plástico. Existem estudos que apontam o cânhamo, que já foi em tempos idos uma aposta forte em termos de cordame e que poderá ser uma alternativa viável, a par com certos tipos de algas, para a substituição de certos plásticos e papeis/embalagens cartonadas.

E existe ainda um grande caminho a percorrer em matéria de informação sobre resíduos, nomeadamente na identificação em tempo real do que permanece a bordo e do que é descarregado, não para uma análise pontual de um navio, mas a análise de todos os navios em águas nacionais e europeias. À data, a informação sobre resíduos já é comunicada e tramitada digitalmente, mas a complexidade do reporte e do acesso a redes de comunicações nos Portos (abrangência do 3G/4G e Wi-fi) ainda não permite a sua comunicação de forma totalmente estruturada e desmaterializada, de modo a identificar o estado da arte das descargas de resíduos em Portugal e na Europa.

Por outro lado, importa ressalvar que os comportamentos não se mudam por legislação, e que é necessária uma maior sensibilização, nomeadamente nas escolas de formação de profissionais da pesca e marítimos e junto das suas comunidades, para  minimizar a problemática do não reporte de incidentes de descargas, eventuais naufrágios e melhorar os comportamentos a bordo. Esta sensibilização deve igualmente ser estendida a todos os navegadores de recreio que representam cerca de 80% do tráfego perto da costa.

Deste modo, poderá até ser instituído a nível europeu um mecanismo de reconhecimento do contributo para a sustentabilidade dos navios e embarcações, de registo europeu ou não, para premiar os melhor classificados.

A forte dependência da adesão da UE e o carácter não obrigatório de preenchimento de um formulário eletrónico que possa segmentar os dados e melhorar a qualidade da informação existente, faz com que os dados existentes sejam recolhidos e tratados em deferido para efeitos estatísticos, sem o detalhe e o tempo necessários que um estudo desta natureza requer.

Assim, em futuras evoluções da regulamentação e legislação será importante a complementaridade entre todos os mecanismos regulatórios e o reporte em suporte aplicacional que permita a sua comunicação e tratamento em tempo real para se poderem inferir tendências e mais caminhos para a valorização de resíduos específicos, quem sabe até criar sinergias regionais ou locais.

O Futuro

Existem mundialmente 40% de armadores de origem europeia, mas verifica-se que apenas 8,2% da arqueação bruta da frota mundial está registada em países de bandeira europeia. Em números, apenas 9199 navios dos cerca de 99800 que existem mundialmente, sendo na sua maioria petroleiros e porta-contentores.

Nos portos europeus chegam navios de todas as origens, verificando-se que o reforço das regras internacionais e comunitárias diminuíram drasticamente a ocorrência de incidentes ao largo das águas europeias. Apenas aproximadamente 1% dos derrames de petróleo desde 1970 ocorreu em águas europeias, num total de 911 toneladas de crude perdido.

Figura 3 – Tipo de Navio na Frota Europeia (Fonte: infomaritime.eu)

Nos próximos anos, prevê-se um aumento das trocas comerciais a nível mundial por via marítima, sendo igualmente espectável, no futuro, um aumento quer do número de navios quer da sua dimensão média.

No futuro iremos assistir à adoção de medidas no tratamento dos resíduos dos navios que passarão com certeza pelo estabelecimento de parcerias e acordos a nível mundial, para apoiar a disponibilização de infraestruturas que possam aumentar a capacidade dos meios portuários de receção de resíduos, tendo em conta a geo-especificidade dos diferentes territórios.

Igualmente, as embarcações de menor dimensão, como sejam as de pesca e as de recreio.   serão abrangidas por medidas mais restritivas de tratamento de resíduos a bordo.

A evolução dos sistemas de informação e a cooperação entre os países será, igualmente, fundamental para a monitorização do Estado dos Oceanos e da sustentabilidade económica, social e ambiental da vida na terra.

[blockquote style=”2″]A Declaração de Lisboa e o Compromisso com o Futuro[/blockquote]

Recentemente publicada, a Declaração de Lisboa foi um call for action que resultou da Conferência dos Oceanos, que decorreu em Lisboa, de 27 de junho a 1 de julho de 2022 com o apoio dos Governos de Portugal e do Quénia.

A Conferência representou um momento de pausa para os lideres e decisores mundiais repensarem o futuro dos Oceanos, um apelo ao compromisso e à ação para a procura de soluções inovadoras baseadas na ciência e nas parcerias com vista a iniciar um novo capítulo na ação global pelos oceanos.

Espera-se que A realização desta Conferência contribua para acelerar a implementação das medidas urgentes que são preconizadas na Declaração de Lisboa, tendo sido reconhecido que o oceano é fundamental para a vida no nosso planeta e para o nosso futuro, designadamente no estabelecimento de parcerias e transações comerciais, sendo uma importante fonte de biodiversidade do planeta e desempenha um papel vital no sistema climático e no ciclo da água.

A Declaração de Lisboa firma o compromisso de todos os países com as metas para o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14 – proteger e assegurar a utilização sustentável dos oceanos, incluindo a redução da poluição marinha e dos impactos da acidificação dos oceanos, o fim da sobrepesca e a conservação das zonas e ecossistemas marinhos e costeiros.

Esta declaração salienta medidas para o estabelecimento de ações inovadoras baseadas na ciência, e promoção de parcerias que diminuam as desigualdades, reconhecendo que os países em desenvolvimento, em particular os pequenos Estados insulares em desenvolvimento e os países menos desenvolvidos, enfrentam desafios de capacidade.

Reforça a necessidade de estabelecer parcerias eficazes, incluindo parcerias multissetoriais, público-privadas, intersectoriais, interdisciplinares e científicas, inclusive incentivando o compartilhamento de boas práticas, dando visibilidade a parcerias de bom desempenho e criando espaço para interação significativa, networking e capacitação.

Reconhece igualmente o papel das mulheres e meninas e das práticas indígenas, tradicionais e locais desempenhadas pelas mulheres, pelos povos indígenas e comunidades locais, na tomada de decisão e implementação de soluções globais.

A Declaração estabelece, ainda, orientações claras no sentido de  garantir que os investimentos em pesquisa e em desenvolvimento de novas infraestruturas, como portos e navios, têm por objetivo aumentar a resiliência diante dos impactos climáticos, nomeadamente no que toca à redução das emissões de gases de efeito estufa do transporte marítimo internacional. Nesse sentido foi destacado o papel da Organização Marítima Internacional (IMO) e da sua Estratégia para a Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa dos Navios, salientado a necessidade da próxima revisão fortalecer o cumprimento das metas do Acordo de Paris.

O nosso Oceano, o nosso Futuro, a nossa Responsabilidade.

Este artigo foi incluído na edição 94  da Ambiente Magazine