#Resíduos: Onde estamos e para onde vamos?

“Onde estamos e para onde vamos?” é o mote do trabalho que nos levou até Susana Fonseca, Vice-Presidente da ZERO (Associação Sistema Terrestre Sustentável), e Eduardo Marques, Presidente da Direção da AEPSA (Associação das Empresas Portuguesas para o Setor do Ambiente), com o objetivo de ficarmos a perceber qual o “estado da arte” do setor dos resíduos em Portugal.

Na área dos resíduos urbanos, há pelo menos dois grandes desafios, a começar pela necessidade de promover uma “política ativa de prevenção da produção de resíduos”, algo que, para Susana Ferreira, tem falhado há décadas: “No último Plano Estratégico de Resíduos Urbanos (PERSU), foi estabelecida uma meta de prevenção de resíduos de 10% até 2020, relativamente ao valor verificado em 2012. O preconizado era que, chegados a 2020, a produção de resíduos per capita anual fosse de 410 kg. Contudo, em 2019, o valor per capita anual foi de 513 kg/hab/ano, ou seja, 103kg/hab/ano acima do previsto no anterior PERSU”, exemplifica. Já o segundo desafio passa pela Diretiva-Quadro de Resíduos, que estipula uma meta de preparação para a reutilização e reciclagem de 60% dos resíduos urbanos em 2030: “Portugal, fruto da metodologia do cálculo que seguiu nos últimos anos, a qual induzia uma reciclagem que não existia, andou iludido com uma taxa de 42%. Contudo, com a aplicação da nova metodologia de cálculo definida a nível europeu (reciclado/total de resíduos), somos obrigados a enfrentar a realidade e aceitar o resultado medíocre de 21% em 2021. Portanto, em oito anos, teremos de triplicar a atual taxa, que levámos mais de 20 anos a construir”.

Na área dos resíduos industriais não perigosos, a responsável defende que a aposta deve centrar-se especialmente na “reciclagem” da componente dos “resíduos orgânicos que continuam a ser colocados em aterro, com os consequentes impactos, como odores, poluição da água e emissão de gases de estufa, para além do desperdício de matéria orgânica que deveria ter sido transformada em composto e utilizada para melhoria dos nossos solos”.

Em relação a alguns fluxos específicos de resíduos, como é o caso dos Resíduos de Equipamentos Elétricos e Eletrónicos (REEE), verifica-se uma “baixa taxa de recolha”, sendo que uma das principais razões dessa situação deve-se ao facto dos “comerciantes não estarem a cumprir a sua obrigação de recolherem os equipamentos velhos quando entregam um novo”, como é o caso dos “frigoríficos, em que mais de 70% destes acabam por ir parar a sucateiros, perdendo-se o gás refrigerante para a atmosfera, o que provoca o aumento da temperatura no planeta”, atenta. Os Resíduos de Construção e Demolição (RCD) também têm uma taxa de recolhe e reciclagem muito baixa, sendo que Susana Ferreira constata que “as obras públicas continuam a utilizar poucos materiais provenientes da reciclagem dos RCD”.

A responsável lamenta também que “continua sem ser publicada a legislação sobre a prevenção e remediação da poluição do solo (ProSolos), que esteve em consulta pública em 2015 e que, apesar de constituir uma excelente ferramenta para a redução da poluição dos solos, o governo continua a não querer publicar”.

Para resumir o estado da arte do setor dos resíduos em Portugal, Eduardo Marques não tem dúvidas de que o “adequado tratamento de resíduos é cada vez mais central para a proteção do ambiente e da economia circular” no país, ainda mais numa altura em que Portugal tem de garantir metas ambientais europeias cada vez mais ambiciosas: “O caminho só pode ser o do cumprimento dos objetivos nacionais de sustentabilidade ambiental em todas as fileiras de resíduos, onde o tratamento e a reciclagem adequados dos materiais usados são fundamentais”. Apesar destas ambições, o presidente da AEPSA reconhece, igualmente, que os resultados ainda estão muito longe das metas definidas.

“É fundamental evitar os erros da área das embalagens na recolha seletiva de biorresíduos”

Relativamente às novidades legislativas previstas para o setor, Eduardo Marques apesar de reconhecer que o Governo tem vindo a “desenvolver diversas iniciativas legislativas estruturantes” no setor, como a “revisão do UNILEX”, nota que “ainda falta clarificação” nesse sentido. Por outro lado, “aguarda-se com expetativa a emissão das novas licenças das entidades gestoras (EG)” que têm como principal missão garantir o cumprimento dos objetivos ambientais: “É fundamental que os concursos que vierem a ser lançados para as EG valorizem sobretudo os critérios ambientais adequados que os operadores têm que observar, para se atingirem as metas de tratamento e valorização de resíduos que Portugal tem que cumprir”.

Em matéria de novidades, Susana Ferreira destaca o PERSU2030 (Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos), cuja consulta pública decorreu já há muito tempo, mas que “tarda em ver a luz do dia”: “Esperamos que, muito em breve possamos conhecer o modelo do sistema de depósito com retorno para embalagens de bebidas descartáveis”, que já deveria estar em implementação há um ano. A representante da ZERO lembra ainda o desafio da “responsabilidade alargada do produtor, cujos objetivos terão de ser substancialmente alterados para poder cumprir com a sua função”, bem como as “medidas que respondam aos desafios”. Também em breve deverá haver a “proposta de metas de reutilização de embalagens de bebidas”, cuja definição está prevista até ao final de 2022, para entrarem em vigor em 2023. Face a algumas posições assumidas pela tutela para esta área, “esperamos que não venham a ser feitas apostas em soluções sem resultados comprovados (como a gaseificação, reciclagem química, etc.) que nada fazem para resolver o problema estrutural de aumento da produção de resíduos e cujo desempenho ainda não está comprovado (ainda que há muitos anos sejam apresentadas como soluções)”, reforça Susana Ferreira, alertando que “Portugal não tem recursos nem tempo para desperdiçar em soluções sem provas dadas”.

Centrando a questão na área dos resíduos urbanos, a ZERO espera que “o setor vá ao encontro das tendências verificadas a nível europeu de ter uma aposta cada vez mais forte na implementação de medidas que promovam a prevenção da produção de resíduos, a reutilização, a recolha seletiva de proximidade, a aplicação de instrumentos financeiros”, visando “promover as melhores práticas de produtores e  consumidores”, e que “se compreenda que o sistema não está a funcionar”, algo que Susana Ferreira diz estar bem expresso através da “estagnação” na reciclagem: “É preciso fazer coisas diferentes e não apenas alterar pequenas coisas e, certamente, é fundamental evitar os erros da área das embalagens na recolha seletiva de biorresíduos”.

Já Eduardo Marques atenta na complexidade do UNILEX: “Embora seja um instrumento crucial para o setor dos resíduos nos próximos anos, o UNILEX, que faz o enquadramento legal e operacional dos sistemas integrados de gestão de resíduos específicos, é um diploma demasiado denso, de difícil leitura e interpretação, com muitas indefinições e também marcado pela ausência de regulação e controlo efetivos”. Na revisão final deste plano orientador, o presidente da AEPSA defende o “envolvimento ativo de todos os stakeholders para se conseguir um diploma de enquadramento legal mais objetivo, claro e tão simplificado quanto possível”.

“A incapacidade crónica da Agência Portuguesa do Ambiente para desempenhar um papel positivo para a melhoria da gestão dos resíduos em Portugal”

Questionados sobre os desafios que ainda tardam ver resposta, o presidente da AEPSA destaca a implementação de medidas de fiscalização mais adequadas e eficientes: “A atuação das entidades licenciadoras deveria ser reforçada para que as Entidades Gestoras se possam focar na promoção e incentivo dos objetivos de prevenção, reciclagem, valorização e recolha seletiva dos respetivos fluxos específicos de resíduos”.

Já Susana Ferreira considera que, ao nível da prevenção (redução e reutilização), será fundamental que haja uma ação por parte do Governo, no sentido de implementar as medidas certas que a promovam, visto que são mais desafiantes ao alterarem o atual modelo de produção e consumo desenfreado: “Portugal já tem algumas medidas previstas em Lei, pelo que o que será necessário é coragem e visão para as implementar e reforçar”. Para se alcançarem as ambiciosas metas de reciclagem dos resíduos urbanos, a represente da ZERO defende a necessidade de se recorrer a todas as ferramentas que estão à disposição, dando como exemplo, a “sensibilização da população e o sistema de recolha seletiva”, que terá de ser de “grande proximidade para garantir o encaminhamento dos resíduos para reciclagem”. E se isso já era desafiante nos resíduos de embalagens, será ainda mais desafiante em relação aos biorresíduos. No entanto, “tem sido sistematicamente esquecido que, a montante dessas ferramentas, existe uma condicionante que consiste nos modelos económicos errados” que, atualmente, estão subjacentes às várias fases da gestão dos resíduos urbanos: o “valor de contrapartida pago pela recolha e triagem de embalagens: a maioria das embalagens de plástico colocadas no mercado não paga ecovalor”. Além disso, a “Taxa de Gestão de Resíduos (TGR) paga por incumprimento pelas entidades gestoras de fluxos é insignificante” e “não incentiva suficientemente o desvio de recicláveis de aterro ou incineração”. Acresce também o “atraso no sistema de depósito/retorno para embalagens de bebidas” e o PAYT está “a marcar passo”. Neste último, Susana Ferreira, aponta as dificuldades dos municípios em avançarem para o PAYT, uma vez que, “não têm a certeza de que serão devidamente ressarcidos de investimentos que façam na recolha seletiva”, acabando “geralmente por se inibirem de fazer a substituição dos ecopontos pelo porta-a-porta (necessária ao PAYT) ou de  indexar a tarifa do lixo à produção de resíduos e não ao consumo de água”. Outro problema é a “incapacidade crónica da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) para desempenhar um papel positivo para a melhoria da gestão dos resíduos em Portugal”, quer “pelas medidas (ou falta delas)”, quer pela “grande dificuldade que tem patenteado em desenvolver um sistema moderno e fiável de dados sobre o setor”, para além de em muitos casos “divulgar dados simpáticos”, mas que “infelizmente não correspondem minimamente à realidade”.

“É um setor que pode dar um enorme contributo para aumentar a resiliência de Portugal a crises”

Face aos desafios, Eduardo Marques defende que Portugal deve tirar partido das competências das empresas nacionais, que possuem elevados níveis de especialização e capacitação: “As empresas associadas da AEPSA realizaram investimentos para aumentarem a sua competitividade no atual contexto dos mercados nacionais e internacionais e para se prepararem melhor para superar os desafios da globalização a médio e longo prazo”. Assim sendo, quando questionado sobre o futuro, o presidente da AEPSA não tem dúvidas de que o setor nacional dos resíduos constitui uma “enorme oportunidade” para o desenvolvimento económico do país: “A economia circular é o principal caminho para salvaguardar os recursos naturais do planeta, minimizar a produção de matérias-primas e valorizar os resíduos, enquanto elemento essencial para suprir as necessidades crescentes de consumo”. Para atingir este objetivo, é imperativo que “adotemos um enquadramento legal, fiscal e regulatório ambicioso e eficiente que permita que as empresas especializadas e outros intervenientes valorizem os resíduos, para que estes sejam os verdadeiros protagonistas da produção industrial no futuro”, sustenta.

Já Susana Ferreira lembra que o desafio é enorme e que Portugal tem problemas estruturais que têm de ser solucionados rapidamente para dar os sinais certos ao mercado e aos agentes do setor: “As soluções já existem e estão comprovadas. É um setor que pode dar um enorme contributo para aumentar a resiliência de Portugal a crises, nomeadamente se for aproveitado o potencial da Economia Circular”. A introdução de sistemas de depósito com retorno nas embalagens descartáveis (previsto na Lei desde 2018), mas também noutros fluxos (por exemplo, equipamento elétrico e eletrónico), no sentido de garantir a entrega dos resíduos no local correto no final da sua vida”, é outra solução defendida pela Associação, bem como a aposta de forma alargada em “sistemas de recolha porta-a-porta que facilitem a vida aos cidadãos e que garantem taxas de recolha elevadas e em instrumentos financeiros que incentivem as melhores práticas”. Susana Ferreira reitera ainda o desafio da “reforma da responsabilidade alargada do produtor”, de forma a “garantir o respeito pela hierarquia de gestão de resíduos, nomeadamente a redução da produção, a reutilização e a efetiva reciclagem: há novos fluxos que entrarão nesta lógica, entre eles os têxteis, pelo que é importante salvaguardar esta visão neste como noutros fluxos”, remata.

*Este artigo foi incluído na edição 97 da Ambiente Magazine