SPV: “Há uma carência enorme de conhecimento das pessoas à prática abrangente da reciclagem” 

Olhar para os resíduos como recursos capazes de transformarem o panorama económico, ambiental e social do país é uma das premissas em discussão no que toca ao futuro dos recursos. Mas “Quais são as implicações?”. Esta questão serviu de ponto de partida para João Ferreira, jornalista do Correio da Manhã, dar início ao evento digital “Como é que os portugueses vêem a reciclagem?” promovido, esta semana, pela Sociedade Ponto Verde (SPV).

Se o sistema comercial “dificulta ou não” a participação ativa dos consumidores, Ana Filipa Claro, diretora de Serviços de Direito do Consumo, julga que há aspetos a melhorar: “A economia circular requer um envolvimento e uma concentração de esforço de todos os elementos da cadeia de valor: quem concebe o produto, produz, comercializa e consome consumidor”. Recorrendo aos resultados do estudo “Práticas e Representações sobre Resíduos e Reciclagem”, promovido pela SPV, Ana Filipa Claro destaca como mais valia e uma oportunidade o facto dos consumidores terem identificado que querem mudar a forma como consomem como também a forma como os produtos são comercializados e disponibilizados, quer seja no retalho, quer seja nas superfícies comerciais: “Há aqui um papel importante na informação que é disponibilizada sobre as características das embalagens quando os consumidores as adquirem”, evidência. Desta forma, a diretora de Serviços de Direito do Consumo chamou a atenção para o facto de que, segundo o estudo, ainda são poucos os consumidores que têm essa preocupação no momento da compra: “É um aspeto que deverá ser melhorado”. Por isso, o caminho a percorrer é o da “capacitação”, da “sensibilização” e “informação” aos consumidores, defende.

Outro aspeto que mereceu a atenção da responsável é o facto de existirem consumidores a diferentes velocidades: “Temos grupos etários que estão mais envolvidos nesta transição verde, mas, por outro lado, temos outros grupos que precisam de um olhar mais atento e de maior proximidade”. Aqui, Ana Filipa Claro acredita que as Juntas de Freguesia podem ter um papel muito relevante, essencialmente, a “sensibilizar” este grupo de consumidores a mudarem comportamentos. Também, a questão da acessibilidade dos produtos sustentáveis e a participação dos consumidores, leva a responsável a sublinhar a necessidade de se ter em conta os custos, podendo constituir um “obstáculo” ou um “desincentivo” à participação: “É preciso ter presente que queremos mudar para uma economia circular e queremos que todos participem sem deixar ninguém para trás”. Para tal, é fundamental ter “políticas públicas” a nível nacional e europeu que tenham esta “sensibilidade”, que “promovam” e que “capacitem” estes consumidores para uma participação ativa e consciente, defende

[blockquote style=”2″]A SPV tem ativamente um estratégia de inovação … mas sem a colaboração, os projetos de inovação fazem pouco sentido[/blockquote]

Apesar dos portugueses estarem cada vez mais participativos na atividade da reciclagem, Ana Isabel Trigo Morais, CEO da SPV,  constata que a altura não é de “baixar os braços”, sendo fundamental “olhar para a maior ameaça” que o mundo enfrenta (“alterações climáticas”) e a urgência de se mudar comportamentos: “Precisamos de um melhor serviço ao cidadão: um serviço de proximidade”. Mas, juntamente com este “serviço de proximidade”, a CEO da SPV destaca a importância de “serem esclarecidas algumas dúvidas” sobre a reciclagem de materiais: “As pessoas precisam de saber o que é que acontece depois do ecoponto”. Por isso, a responsabilidade de quem gere os resíduos deve ultrapassar a “gíria” associada à “recuperação” e “transformação de materiais”, convidando as pessoas para aumentar prática de separação e encaminhamento de resíduos para reciclagem: “Temos de ir mais junto das pessoas, explicar o porquê de estarem a fazer bem ao planeta e a contribuir com a sua atitude para o processo da reciclagem”. No curto-prazo, “mostrar melhor quanto custa gerir os resíduos” em Portugal é fundamental: “Quanto se paga para termos cidades limpas”, exemplifica.

Embora os hábitos de reciclagem, em Portugal, estejam bem “enraizados” no comportamento dos cidadãos, com 95% das embalagens de vários tipos a conhecer a reciclagem, o mesmo não acontece com as pilhas ou medicamentos, por exemplo, com 45% e 30%, respetivamente.  Esta discrepância leva a CEO da SPV a alertar para a “carência enorme  de conhecimento” das pessoas, relativamente à prática abrangente da reciclagem além das embalagens: “Se já fizemos um caminho e se já há noção da prática da reciclagem, temos ainda que evoluir mais”. E, se o objetivo é atingir as metas de diminuição do impacto ambiental do consumo e da atividade, Ana Isabel Trigo Morais é perentória: “Não podemos passar a vida a olhar só para as embalagens”. No desafio de “convocar” o cidadão para a causa da reciclagem com hábitos, práticas e atitudes efetivas, é essencial criar uma infraestrutura de serviço: “Quando oferecemos conveniência, o cidadão participa ativamente e, se puder ser recompensado, vemos que isso contribui decisivamente para aumentar o nosso desempenho e, assim, promover a economia circular”, destaca.

Enquanto “missão” e “obrigação”, a CEO da SPV defende a necessidade de uma cadeia de valor com “práticas colaborativas” e com “capacidade” de partilhar e dialogar entre todos.

Num momento de “viragem” em que a inovação está a ser introduzida, a responsável considera que a mesma precisa de ser incentivada para que se possa introduzir as melhorias: “A SPV tem ativamente uma estratégia de inovação que incide em vários aspetos da cadeia de valor e da atividade (…), mas, sem a colaboração, os projetos de inovação fazem pouco sentido”. O que faz sentido é “financiar projetos” para estimular a inovação, em parceria com os  parceiros da cadeia de valor: “Na educação temos que trabalhar com o consumidor; na inovação e na gestão operacional com os stakeholders; na legislação e na definição de um quadro regulatório com as autoridades”, sucinta.

[blockquote style=”2″]Temos que ter mais coordenação, mais diálogo eficaz e efetivo e menos litigância e discórdia[/blockquote]

À questão sobre como deve ser melhorada a gestão dos resíduos urbanos, também Emídio Pinheiro, presidente do conselho de Administração da Environment Global Facilities (EGF), recorre aos resultados do estudo para reforçar que a “proximidade” e a “conveniência” são os “critérios mais importantes” para adesão dos cidadãos à reciclagem e à recolha seletiva, mas que tem de ser complementado com mais ingredientes, que estão todos ligados à “informação” e à “educação ambiental”. E esse é um “papel indissociável” de todos os participantes que têm um contacto mais direto com os cidadãos, como é o caso da EGF: “Nós desenvolvemos atividades diretamente com os cidadãos, nomeadamente com as escolas, onde promovemos campanhas e ações de sensibilização”. Os próximos anos devem ser, por isso, investidos em mais “conveniência” e “proximidade”, através de programas de recolha porta-a-porta: “Sinto que ao nível da gestão dos intervenientes, neste processo, que são múltiplos e, por vezes, com interesses contraditórios, temos que ter mais coordenação, mais diálogo eficaz e efetivo e, menos litigância e discórdia”.

[blockquote style=”2″]Momento certo para conseguirmos passar de um ciclo vicioso para um ciclo virtuoso[/blockquote]

Um dos resultados do inquérito é que os resíduos urbanos são uma “preocupação maior dos portugueses” à escala nacional e à escala local. Luísa Schmidt, coordenadora do estudo e investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, olha para a “mudança rápida” da SPV nos últimos anos para dizer que passou de uma “sociedade ruralista” para uma “sociedade de consumo”, sendo que “trouxe e continua a ideia” de que tudo é possível aproveitar. Nestes anos de mudança, Portugal viveu duas crises graves: “Com ambas,  percebeu-se a relevância do que é o desperdício. Um outro inquérito mostra, precisamente, que as pessoas estão mais sensíveis em relação ao desperdícios”. Em  simultâneo, o efeito da educação ambiental praticada há anos nas escolas contribui favoravelmente para a preocupação cada vez maior dos portugueses. No entanto, não é suficiente para se perceber o valor e a importância da economia circular: “É preciso investir mais na literacia, ter um melhor registo de comunicação a vários níveis, com programas informativos que ajudem as pessoas a perceberem o valor do circuito dos resíduos e o valor da economia circular e para não se criar desconfiança”, atenta. Para tal, Luísa Schmidt defende a criação de uma figura capaz de ajudar os consumidores, como “mediadores que expliquem sobre estas matérias”.

Também, a questão do ordenamento do território é fundamental: “Nos bairros mais organizados e limpos, as pessoas tendem a aderir mais à separação”. E, apesar da pandemia ter causado uma maior atenção por parte das pessoas às questões ambientais, trouxe ainda uma importância acrescida ao espaço urbano em geral e, inclusive, aos bairros: “Este é momento certo para conseguirmos passar de um ciclo vicioso para um ciclo virtuoso ao nível dos resíduos e limpeza pública”.

Quando o tema é sustentabilidade, todos são chamados à causa e, isso, implica um “trabalho conjunto” entre empresas, Estado,  faculdades ou autarquias: “É preciso muito mais trabalho de comunicação ativa de continuidade, clareza e mediação qualificada”, reitera.

[blockquote style=”2″]Acomodamo-nos a colocar os resíduos em aterro[/blockquote]

Voltando ao passado, Nuno Lacasta, presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) reconhece que a recolha seletiva e a reciclagem implementada há 25 anos é algo que está internalizado no hábito do consumidor:  “É um ganho civilizacional”. Porém, nesta última década o mesmo não aconteceu: “Temos estagnado”. E os números dizem isso mesmo: “Se olharmos para as metas que estão subjacentes a isto, vemos uma acomodação a um contexto regulatório e de gestão que, depois desta primeira geração de fechar lixeira e abrir aterros, não conseguimos imprimir eficácia”. E a causa disso é, precisamente, não se conseguir informar os cidadãos do resultado das operações do tratamento: “Vão demasiados materiais indiferenciados  para aterro e esta prática tem que mudar”. Basicamente, “acomodamo-nos”, afirma, frisando que se ignora o potencial de valorização e reciclagem” do materiais, alerta. Algo que é preciso internalizar na cabeça dos portugueses é que um “resíduo é uma matéria-prima fora de sítio”, defende.

Olhando ao presente e futuro, Nuno Lacasta está esperançoso com o “momento de viragem” que se assiste: Os cidadãos exigem dos decisores e gestores muito mais e a temática do plástico de uso único são menos toleradas”. Depois, há uma “nova geração de políticas” que obrigam a ser mais exigentes nas metas, sendo que, para isso, “temos que ser mais racionais”, precisa. É precisamente nos hábitos antigos que o foco deve estar: “Temos que separar os resíduos orgânicos dos resíduos que têm potencial de serem  retomados a uso”. Também o “design” é essencial: “É inadmissível que os produtos modernos sejam desenhados para ter um fim de vida muito inferior àquilo que deveria ser o caso”, afinca.

Nos desafios que o setor ainda tem que enfrentar, o presidente da APA defende a importância de se “redesenhar” para não existir “embalagens sobre embalagens”. Na gestão dos resíduos, a aposta deve estar na separação e na recolha porta-a-porta: “Portugal tem uma taxa de experiências muito inferior à média dos países com os quais nos devíamos comparar”. E aqui, atenta há muito a fazer: “Não vamos abandonar os ecopontos: é um complemento aos ecopontos e a recolha porta-a-porta tem que ser mais trabalhada”.

Nuno Lacasta quis aproveitar o momento para agradecer à elaboração do estudo “Práticas e Representações sobre Resíduos e Reciclagem”, da SPV: “ É importante saber como os portugueses vêem a gestão dos resíduos para tomar decisões acertadas de gestão”.