“Temos todas as condições para uma inoperância total” na área da Conservação da Natureza

Portugal tem o pior desempenho na Gestão de Resíduos e Conservação da Natureza, ocupando a 27.ª e 25.ª posições, respetivamente, no Índice de Transição Verde (Green Transition Index). O Índice realizado pela Oliver Wyman demonstra que o nosso país em matéria de Conservação da Natureza está muito aquém do que era esperado. A Ambiente Magazine quis saber, junto do GEOTA – Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente qual o verdadeiro impacto desta fraca performance do país nesta área.

Partindo do pressuposto que cerca de 23% do território nacional continental é afeto ao Sistema Nacional de Áreas Classificadas, integrando não só a Rede Nacional de Áreas Protegidas (cerca de 8% do território) mas também a Rede Natura 2000 e as Áreas Classificadas ao abrigo de convenções internacionais, Miguel Jerónimo, coordenador do projeto “Renature” e associado do GEOTA, relembra que, apesar dos parques e das áreas protegidas terem sido criados no papel, “não lhes foram dados os meios mínimos indispensáveis” que garantam a “fiscalização, manutenção e preservação dos habitats, das espécies e dos serviços dos ecossistemas por eles prestados”. E, embora, tenha existido uma “inversão recente do ponto vista da perceção e opinião públicas, motivadas pelas alterações climáticas e pela luta das gerações mais jovens”, o responsável refere que “a Conservação da Natureza é ainda hoje relegada para uma função menor nos sucessivos Governos e nas suas respetivas opções políticas”. A isto, soma-se o facto da “esmagadora maioria das Áreas protegidas serem um conjunto de propriedades de privados que não foram tidos em conta na sua constituição e formulação” e à “falta de transversalidade nas políticas públicas (nacional, regional e municipal) e diversos organismos que afetam a Conservação da Natureza (água, solo, florestas, agricultura, urbanismo, etc.)”. Em suma, “temos todas as condições para uma inoperância total nesta matéria”, lamenta.

Esta fraca performance de Portugal, tal como explica Miguel Jerónimo, está relacionada com o “modelo de governança português”, onde existe uma “diferença substantiva entre aquilo que está na matriz inicial da gestão destas áreas (DL. 19/93, de 23 de janeiro), com uma gestão e serviços desconcentrados por Área protegida (AP) e uma Comissão Diretiva da qual fazia parte um representante das autarquias abrangidas pelo Parque”. O “atual modelo que opta por municipalizar a gestão das mesmas, ficando os Municípios na presidência, ficando permeáveis aos ciclos políticos curtos e a diferentes interpretações sobre o que deve ser a importância e visão estratégica para essas áreas”, refere o investigador, acrescentando que “muitas das Comissões de Cogestão das AP ainda nem sequer tomaram posse, pendente o processo há vários anos, estando a sua gestão num limbo”. Assim, é defendida a “existência de um rosto de “Diretor de Área Protegida” (independente dos poderes políticos) e dos respetivos serviços”, no sentido de “aproximar a gestão destas áreas face à realidade no terreno e as comunidades locais que foram sendo afastadas do processo nas últimas décadas”. Por isso, enquanto estas questões não forem resolvidas “iremos assistir a uma sucessiva degradação e desertificação do nosso território e da perda de serviços de ecossistemas (solo, ar, água, etc.) essenciais não só à nossa sobrevivência, mas também das restantes espécies”, alerta.

“Perdeu-se conhecimento, memória institucional e capacidade de intervenção”

Ao nível de ações urgentes, Miguel Jerónimo começa por relembrar que o Estado apenas detém “2% da propriedade rústica”, sendo que “os restantes 98% pertencem a meio milhão de proprietários com uma dimensão média da propriedade de 5 ha”, muitas vezes dividida em várias parcelas: “Não se conhece a titularidade de grande parte das propriedades, devido às múltiplas sucessões e partilhas não registadas”. Aliás, “nas últimas décadas, exatamente quando o Estado precisava de se preocupar mais com os espaços rurais em crise e em mudança, as capacidades que tinha foram desmanteladas”, refere o responsável, acrescentando que “os diversos serviços públicos com intervenção na Conservação da Natureza (APA, ICNF, etc.) sofrem de crónica falta de meios humanos, materiais, preparação e coordenação”. Para o representante do GEOTA, esta “incúria sistémica do Estado é grave, porque perdeu-se conhecimento, memória institucional e capacidade de intervenção”. Por outro lado, “o sistema de incentivos em vigor no setor agroflorestal privilegia a rentabilidade de curto prazo”, em detrimento de um “ordenamento que sirva o interesse público a longo prazo”. A título de exemplo, o responsável atenta que, nas últimas décadas, o eucalipto cresceu abertamente nas Áreas Protegidas, alavancado por uma “visão puramente extrativista do território”, com vista a uma “rentabilidade mais rápida” (embora não necessariamente a mais alta): A culpa não é do eucalipto, ou dos proprietários que os instalam, a culpa é das políticas medíocres definidas pelo Estado”. No passado, “a desregulação até parecia favorecer os setores industriais das fileiras do eucalipto e do pinheiro, mas, neste momento, isso já nem é verdade, porque a vulnerabilidade aos incêndios e a subutilização do território reduziram o valor e aumentam os riscos associados à floresta”, precisa.

Se nada for feito, Miguel Jerónimo alerta que o cenário que se avizinha será marcado pela “expansão urbana e industrial”, pelo “uso insustentável do solo”, pela “intensificação da agricultura”, pela “gestão intensiva das florestas”, pela “expansão de espécies exóticas invasoras”, pela “sobre-exploração dos recursos naturais”, pela “alteração dos sistemas naturais, nomeadamente a artificialização da rede hidrográfica”, pela “sua fragmentação por construção e barragens”, pela “alteração do regime natural dos caudais, drenagem e aterro de zonas húmidas”, bem como pela “sobre-exploração dos recursos hídricos, que são os principais culpados pela fragmentação e degradação dos ecossistemas e habitats, perda de espécies e ameaça dos equilíbrios naturais”. Portanto, “se o modelo económico e de desenvolvimento não for repensado, pouco ou nada irá mudar”, alerta.

“Haja coragem política para assumir o caminho, e bom senso para ouvir quem tem de ser ouvido”

Apesar de ser já reconhecido que os impactos das alterações climáticas são certos e incontornáveis, Miguel Jerónimo considera que isso não pode ser um impedimento para a mitigação desses mesmos impactos ou para adaptação de um território mais resiliente: “Neste campo, o Homem é o principal culpado e terá de partir de si as principais soluções”.

Perspetivando os próximos 10 anos, o GEOTA desejava que ficassem marcados por “outro tipo de crescimento”, isto é, “mais imaterial, mais ambiental, mais ético e de maior justiça social”. Para Miguel Jerónimo, “a mudança é possível e o utópico é pensar num crescimento infinito num planeta finito e com cada vez mais população”. Numa perspetiva positiva, o GEOTA defende que “o desenvolvimento sustentável dos territórios rurais deve ser uma prioridade, com a aposta e preservação dos habitats e espécies autóctones”, assente numa “mudança estrutural de apoio aos proprietários privados”, através do pagamento dos serviços dos ecossistemas: “Vemos uma área que se especializou e se atualizou para fazer face às alterações climáticas que afetam Portugal e que tem mais em conta o conhecimento científico do que o retorno económico de curto prazo; e vemos um país que promoveu fortemente o associativismo e a participação das comunidades locais neste processo, contribuindo para melhorar a coesão territorial socialmente e economicamente”.

Sendo o território um sistema complexo, o represente do GEOTA relembra a impossibilidade de resolver de um dia para o outro os problemas acumulados por décadas de negligência: “O diagnóstico está feito e as soluções essenciais são conhecidas. Haja coragem política para assumir o caminho e bom senso para ouvir quem tem de ser ouvido”. Usando a premissa “devagar se vai ao longe”, Miguel Jerónimo defende que “as soluções duradouras para a nossa floresta têm de ser construídas de forma cooperativa com as partes interessadas”.

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