Depois de um apagão geral na Península Ibérica a 28 de abril de 2025, ninguém esquecerá as horas que temeu ficar sem luz, sem bateria no telemóvel e sem comunicar por dias. Mas outro alerta surgiu: como está o nosso sistema energético? A Ambiente Magazine desafiou diferentes entidades a colocar em cima da mesa as necessidades do setor e da sua inovação.
As luzes acesas em casa, os equipamentos elétricos a funcionar, o simples ato de carregar o telemóvel, as ruas iluminadas pela noite adentro, são algumas das coisas que as pessoas têm tomado por garantidas no seu dia-a-dia. Mas há sempre um desafio ao virar da esquina: no passado dia 28 de abril, perto das 11h30, o país (e Espanha) ficou às escuras. Não fosse o sol ainda alto, as estrelas e a lua seriam o guia mais certo para uma população que se viu privada da eletricidade e das comunicações por várias horas.
Ainda sem respostas concretas para as origens deste apagão, a verdade é que muitas entidades se apressaram a expressar a sua preocupação com o sistema elétrico nacional e com a falta de renovação das infraestruturas associadas, o que coloca em causa o normal funcionamento da vida das pessoas.
No momento em que o setor energético está num ponto de viragem, no caminho da transição para as energias renováveis e para soluções ambientalmente mais proveitosas, a Ambiente Magazine ouve a posição de diferentes empresas sobre o panorama atual do setor da energia.

João Amaral, CTO (Chief Technology Officer) da Voltalia Portugal, começa por dizer que “o panorama energético português é, hoje, particularmente entusiasmante”, porque “estamos a assistir a uma transição efetiva para um sistema mais sustentável, com as energias renováveis a representarem uma fatia cada vez maior do consumo de eletricidade em Portugal”.
O nosso país “tem condições naturais excecionais, com o sol, vento e recursos hídricos que o colocam numa posição privilegiada para liderar a transição energética a nível europeu”.
Mas, ao mesmo tempo, existem desafios a ultrapassar: “o processo de licenciamento continua a ser moroso e complexo, e o reforço das infraestruturas de rede é absolutamente crítico para acomodar o crescimento de projetos renováveis”.
Desta forma, “a hibridização de tecnologias, como a combinação de solar, eólica e hídrica, será uma das chaves para aumentar a estabilidade e eficiência da produção e evitar a intermitência das energias”. “Se conseguirmos alinhar as políticas públicas, o investimento privado e a inovação tecnológica, Portugal pode afirmar-se como um verdadeiro hub de energia verde na Europa”, acrescenta o CTO.

Mo Horowitz, CCO ( Chief Commercial Officer) da Solargik, concorda com esta perspetiva, no entanto chama a atenção que a potencialidade de Portugal não está a ser aproveitada no seu máximo. Por exemplo, no caso da energia solar, a capacidade instalada de parques solares no nosso país está atrás de outros europeus, como a Espanha e a Alemanha.
“O objetivo nacional de obter 80% de energia renovável até 2026 levou ao desenvolvimento de inúmeros projetos, mas os desafios persistem, em particular com a complexidade do terreno, acesso a espaços para a instalação dos parques e interligação com a rede”. “Muitos dos locais viáveis têm inclinações relevantes, estão fragmentados, ou são sensíveis em termos agrícolas ou ambientais. Os promotores necessitam de sistemas de seguimento/rastreamento solar que consigam enquadrar-se no terreno, não obrigando o terreno a adequar-se a eles”, explica ainda.
Em relação ao famoso apagão, o evento reforçou a “necessidade de ter sistemas solares que suportam a resiliência da rede. Isto significa que os ativos devem ser mais inteligentes e capazes de reagir e adaptar-se, não sendo apenas produtivos”.

Assim, a prioridade poderá passar, na opinião de Mo Horowitz, pela entrega de energia alinhada com a rede, pela integração do agrovoltaico, para localização de soluções e pela utilização de energia solar mais flexível no uso do espaço.
Para Armando Santos, Global Partner e Head of Energy Business Unit da Quadrante, “é urgente que o investimento público e privado acompanhe o ritmo da transição energética” e “isso passa por acelerar a eletrificação da economia, reforçar redes de transmissão e distribuição de energia e torna-las inteligentes, promover a descentralização da produção e a criação de sistemas de armazenamento de energia através de baterias, hidroelétricas, entre outras tecnologias, e garantir a modernização de infraestruturas críticas”.
“É também essencial apostar em regulação moderna, inovação tecnológica e parcerias público-privadas, garantindo articulação entre engenharia, tecnologia e políticas públicas. Só com esta abordagem integrada será possível atingir um mix energético limpo, eficiente e acessível”, afirma o responsável.
Na perspetiva da Cleanwatts, Andreia Carreiro, VP de Inovação, comenta que “a aposta nas fontes renováveis e na eficiência energética são pilares fundamentais para que a transição energética em curso seja bem-sucedida”.

“Temos ainda setores estratégicos, por exemplo os transportes e a indústria, que são responsáveis por uma boa parte do consumo de energia e necessitam de uma maior atuação de fontes renováveis. É bom ver que o investimento nestas fontes e a aposta contínua em eficiência energética são pilares da estratégia nacional para garantir um sistema energético mais sustentável, resiliente e alinhado com os compromissos europeus e globais”, diz também.
Como esta empresa se dedica à criação de Comunidades de Energia e no desenvolvimento de ferramentas digitais que facilitam a gestão energética local, considera que é fundamental “agilizar e melhorar os processos de licenciamento e financiamento”.
Já no caso da Otovo, o Diretor-Geral na Península Ibérica e França, Manuel Pina, crê ser “necessário rever a forma como a nossa rede pode suportar os desequilíbrios energéticos que podem surgir com o aumento das energias renováveis”, essencialmente depois de uma experiência como o apagão geral de 28 de abril.
No seu ponto de vista e face àquilo que é a comercialização da empresa, “as baterias residenciais podem ter um papel importante ao dosear melhor as descargas de energia produzida através de sistemas fotovoltaicos”.

De qualquer maneira, “é importante que as políticas de transição energética estejam mais focadas nas famílias portuguesas, uma vez que o setor residencial é um dos que mais pode contribuir para que Portugal atinja as metas ambiciosas do PNEC 2030”. “Para isso, é necessário criar mecanismos que facilitem às famílias a adoção de sistemas de produção de energia para autoconsumo, assim como rever a tributação destes mesmos sistemas, mas também dos imóveis onde estes estão instalados”.
Também a ACEMEL (Associação dos Comercializadores de Energia no Mercado Liberalizado), através da sua porta-voz Ana Bernardo, trouxe para a conversa os problemas estruturais do setor que não podem ser ignorados, desde logo, as redes congestionadas, a burocracia no licenciamento, a instabilidade regulatória e a dificuldade de integração de novos modelos como o autoconsumo coletivo e as comunidades de energia.
“Existe um desfasamento entre a ambição política e a capacidade operacional do sistema. Por isso, é essencial garantir que a transição seja equilibrada, com espaço para todos os agentes do mercado e com foco no consumidor final”, comenta a Diretora-Executiva da associação.
“Sem uma gestão dinâmica, digital e transparente dos dados e dos fluxos energéticos, será impossível acomodar o crescimento das renováveis distribuídas e da mobilidade elétrica. Em paralelo, é urgente reforçar a proteção do consumidor, assegurar uma regulação estável e previsível, e promover o acesso equitativo aos dados e às redes para todos os comercializadores, independentemente da sua dimensão. Acima de tudo, é essencial assegurar um mercado verdadeiramente concorrencial, com regras semelhantes e justa para todos os agentes, evitando assimetrias entre operadores históricos e novos entrantes, e garantindo que a inovação e a eficiência são devidamente recompensadas”, reforça.
Renovação das infraestruturas energéticas é urgente

“As infraestruturas atuais não são suficientes”, é o que começa por referir Ana Bernardo da ACEMEL, acrescentando que “precisamos de uma reforma profunda das redes, especialmente ao nível da distribuição, com mais capacidade de receção de energia renovável descentralizada e com ferramentas de gestão digital. É igualmente necessário repensar os modelos tarifários de acesso às redes, garantindo que incentivam o comportamento eficiente dos consumidores e a integração de novas tecnologias”.
A verdade é que a transição energética exige “um sistema mais flexível, interconectado e inteligente”, “algo que só será possível com investimento estratégico e visão a longo prazo”.
Por sua vez, Manuel Pina da Otovo considera que as infraestruturas de energia precisam de estar preparadas para o aumento de produção de energia a partir de fontes renováveis, porém isso é “algo que ainda não se verifica nos dias de hoje”.
A VP de Inovação da Cleanwatts segue esta linha de raciocínio e acrescenta que, além do reforço das infraestruturas tradicionais, deve ser feito um investimento no armazenamento: “a instalação de baterias, feita de forma descentralizada, pode simultaneamente reduzir os custos da eletricidade e prestar serviços ao sistema elétrico, como balanceamento de áreas e regulação da frequência”.
Considerando fundamental que “à medida que o panorama energético nacional evolui, é necessário que a rede acompanhe essa evolução”, Andreia Carreiro reforça que “uma gestão integrada e conjunta destas baterias instaladas, por exemplo, numa Comunidade de Energia, torna a rede mais resiliente com a introdução da inércia necessária para acomodar eventuais variações de produção e consumo”.
Na visão da Quadrante, a transformação “deve ser sustentada por investimento estratégico (tanto a nível público e privado, como a nível nacional e europeu), inovação e uma visão sistémica, que una engenharia, sustentabilidade e políticas públicas em torno de um futuro mais próspero e sustentável”.
E João Amaral da Voltalia completa o pensamento, dizendo que “continuamos a pensar muito em potência instalada (MW) e o que o consumidor mais necessita é energia (MWh)”. Além disso, é preciso “aceitar que teremos momentos de muita abundância de renováveis, os períodos chamados de super-energia, e que eventuais limitações de produção devem ser acolhidas como um privilégio, porque ter energia renovável disponível é algo diário”.
IA e digitalização no centro da transformação
A inteligência artificial e a digitalização começam a ser termos difíceis de contornar, mas parecem estar a ser bem abraçados por estas entidades no setor.
No que diz respeito à Voltalia, ambas as coisas desempenham um “papel crucial”, pois “vão permitir uma interação mais frequente e em tempo real entre a procura e a oferta, ou seja, entre o consumo e a produção de energia, melhorando a eficiência e incrementando a utilização de renováveis”.
“A digitalização permite monitorizar em tempo real o desempenho dos ativos, tomar decisões mais informadas e reduzir custos operacionais, contribuindo para a sustentabilidade e competitividade da empresa”, explica o CTO.
Por seu turno, na Solargik, “a inteligência artificial e a digitalização estão na base das nossas soluções inteligentes de rastreamento solar”. “A nossa plataforma SOMA Pro utiliza a inteligência artificial para transformar sistemas solares em ativos que podem ser otimizados e reagir com base em dados”, conta Mo Horowitz.
Para esta empresa, os desafios na inovação passam por continuar a evolução na flexibilidade do hardware enquanto se prossegue na redução de custos, por permitir escalar de forma rápida sem comprometer o suporte, o serviço ou a interoperabilidade, e pela educação dos mercados sobre o retorno do investimento em sistemas de rastreamento mais inteligentes e adaptativos, em contraponto aos sistemas fixos utilizados no passado.

João Costa, Founding Partner e Head of Digital Business Unit da Quadrante, considera que a digitalização é uma “verdadeira oportunidade de negócio” e funciona como “um real fator catalisador da proposta de valor que apresentamos ao mercado”.
Este responsável assume que o principal desafio se prende com o atraso no setor da engenharia e da construção nesta tendência face a outros setores da economia: “o nosso setor é muito tradicional e tem resistido a modernizar-se”, e isso tem, evidentemente, “impacto na produtividade”.
No caso da IA, para a Quadrante deve ser feito “um caminho bem estruturado e assente em know-how sólido”, até porque as tecnologias “ficam obsoletas muito rapidamente”. É por isso, que esta empresa está a trabalhar este conceito em duas dimensões: a IA generativa e a IA mais clássica.
Já para a Cleanwatts, a digitalização e a IA “traduzem-se numa maior produtividade, melhor controlo das operações e num serviço de maior qualidade para os clientes”. “Permitem automatizar tarefas, reduzir erros e apoiar a tomada de decisões, tornando a empresa mais competitiva e preparada para o futuro”, acrescenta Andreia Carreiro.
Para a VP de Inovação é essencial focar no “equilíbrio entre o risco da inovação e a estabilidade das empresas”, lembrando que as novas apostas potenciam um crescimento sustentável das entidades e a sua competitividade no mercado.
Manuel Pina da Otovo vê na IA a potencialidade de gerar ferramentas que respondam às necessidades de cada cliente, “com o objetivo de maximizar a poupança das famílias”. Mesmo assim, há o desafio da inovação dos equipamentos que são comercializados: “como não fabricamos diretamente os sistemas, estamos dependentes dos avanços tecnológicos das marcas que os fabricam”, explica.
A ACEMEL acaba por concluir que “o maior desafio à inovação reside na assimetria de acesso à informação e aos dados operacionais do sistema elétrico”. “A inovação exige previsibilidade, abertura e uma cultura de colaboração transversal entre entidades. Apesar deste enquadramento adverso, os associados da ACEMEL têm vindo a apostar na diferenciação de serviços, na criação de ofertas inovadoras e em algumas soluções tecnológicas criadas para um mais eficiente serviço ao cliente”, afirma Ana Bernardo.
“No caso específico dos comercializadores, estes estão a usar a IA para prever padrões de consumo, otimizar compras no mercado grossista e personalizar propostas para os clientes. Por outro lado, a digitalização dos processos operacionais, da ligação à rede de faturação, permite maior eficiência, menos erros e mais agilidade no serviço ao cliente”, completa a responsável.








































